sábado, 7 de agosto de 2021

[Tradução] Altazor (ou a viagem de paraquedas) - Vicente Huidobro (Chile)

 ALTAZOR: UM POEMA DE VICENTE HUIDOBRO EM VII CANTOS, TRADUÇÃO DE GONZALO DÁVILA                    [publicação em série - nº 1]


Prefácio:

Nasci aos trinta e três anos, no dia da morte de Cristo; nasci no Equinócio, sob as hortênsias e  os aeroplanos de calor.

Tinha eu um olhar profundo de pardal, de túnel e de automóvel emotivo. Lançava suspiros de acrobata.

Meu pai era cego e suas mãos eram mais admiráveis que a noite.

Amo a noite, chapéu de todos os dias.

A noite, a noite do dia, do dia ao dia seguinte.

Minha mãe falava como a aurora e como os dirigíveis que estão prestes a cair. Tinha cabelos cor de bandeira e olhos cheios de navios distantes.

Numa tarde, peguei meu guarda-chuva e disse: “Entre uma estrela e duas andorinhas,” Eis aqui a morte que se aproxima como a terra à esfera que cai.

Minha mãe bordava lágrimas desertas nos primeiros arco-íris.

E agora o meu guarda chuvas cai de sonho em sonho pelos espaços da morte.

No primeiro dia encontrei um pássaro desconhecido que me disse: “Se eu fosse um dromedário eu não ia ter sede. Que horas são?” Bebeu as gotas de orvalho dos meus cabelos, me lançou três olhares e meio e se afastou dizendo: “adeus” com seu lencinho soberbo,

Por volta das duas horas daquele dia, encontrei um belo aeroplano, cheio de caracóis e escamas. Buscava um canto no céu onde proteger-se da chuva.

Ao longe, todos os barcos ancorados, na tinta da aurora. De repente, começaram a desprender-se, um por um, arrastando como um pavilhão pedaços da aurora incontestável.

Ao se porem em marcha os últimos, a aurora desapareceu atrás das ondas desmesuradamente inflamadas.       

Então ouvi falar o Criador. Sem nome, que é um simples buraco no vazio, belo como o mais belo dos umbigos.

“Fiz um grande barulho e esse barulho formou o oceano e as ondas do oceano.”

“Esse barulho irá sempre grudado nas ondas do mar e as ondas do mar sempre irão grudadas nele, como os selos dos cartões postais.”

“Depois teci um longo barbante de raios luminosos para costurar os dias um por um; os dias que têm um oriente restituído ou legítimo, porém indiscutível.”

“Depois tracei a geografia da Terra e as linhas da mão."

“Depois bebi um pouco de conhaque (por causa da hidrografia)."

“Depois criei a boca e os lábios da boca, para aprisionar os sorrisos furtivos e os dentes da boca, para vigiar os palavrões que nos chegam à boca."

“Criei a língua da boca que os homens desviaram de seu fim, fazendo-a aprender a falar... a ela, a bela nadadora, desviada para sempre de sua função aquática e puramente acariciadora.”

Meu guarda-chuva começou a cair vertiginosamente. Assim é a força da atração da morte e do sepulcro aberto.

Acredite, a sepultura tem mais poder que os olhos da amada. A sepultura aberta com todos seus imãs. E isso te digo a ti, a ti que quando sorri me faz pensar no começo do mundo.

Meu guarda-chuva ficou preso em uma estrela já extinta que seguia teimosamente a sua órbita, como se ignorasse a inutilidade de seus esforços.

E aproveitando essa pausa bem ganha, comecei a preencher com pensamentos profundos as casas do meu tabuleiro:                         

“Os poemas verdadeiros são incêndios. A poesia se propaga por todas as partes, iluminando suas consumações com estremecimentos de prazer ou de agonia.

“Se deve escrever em uma língua que não seja materna.

“Os quatro pontos cardinais são três: o norte e o sul.

“Um poema é uma coisa que será.

“Um poema é uma coisa que nunca é, mas que deveria ser.  

 “Um poema é uma coisa que nunca foi, que nunca poderá ser.      

“Foge do sublime externo, se você não quer ser esmagado pelo vento.  

“Se eu não fizesse pelo menos uma loucura por ano, eu ficaria louco.”

Pego meu guarda-chuva, e da borda da minha estrela em marcha, me lanço à atmosfera do último suspiro.

Rodopio interminavelmente sobre as rochas dos sonhos, rodopio entre as nuvens da morte.

Encontro a Virgem sentada em uma rosa, e ela me fala:

“Olha minhas mãos: são transparentes como as lâmpadas. “Você não vê esses fios de onde corre o sangue de minha luz toda intacta?

“Olha minha aureola. Ela tem algumas varizes, o que comprova a minha velhice.

“Sou a Virgem, a Virgem sem mancha de tinta humana, a única que não foi feita pela metade, e sou a capitã das outras onze mil que estavam na verdade por demais restauradas.

“Falo uma língua que preenche os corações segundo a lei das nuvens comunicantes.

“Digo sempre adeus, e permaneço.

“Ama-me, filho meu, pois adoro a tua poesia e te ensinarei proezas aéreas.

Tenho tanta necessidade de ternura, beija meus cabelos, lavei eles esta manhã nas nuvens da aurora e agora quero dormir sobre o colchão da neblina intermitente.

“Meus olhares são um arame no horizonte para o descanso das andorinhas.

“Ama-me.”

Me pus de joelhos no espaço circular e a Virgem se alçou e veio sentar-se em meu paraquedas.

Adormeci e recitei então meus mais belos poemas.

As chamas de minha poesia secaram os cabelos da Virgem, que me deu obrigado e se afastou, sentada sobre sua rosa amolecida.

            E eis-me aqui, só, como o pequeno órfão dos naufrágios anônimos.

            Ah, que belo... que belo...

             Vejo as montanhas, os rios, as selvas, o mar, os barcos, as flores e os caracóis.

Vejo a noite e o eixo em que se juntam.

            Ah, ah, sou Altazor, o grande poeta, sem cavalo que coma alpiste, nem esquente sua garganta com claro de lua, a não ser com meu pequeno paraquedas como um guarda-sol sobre os planetas.

De cada gota de suor da minha testa fiz que nascessem estrelas, as quais deixo a vocês a tarefa de batizar como a garrafas de vinho.

Eu vejo tudo, meu cérebro está forjado nas línguas de profeta, termômetro inchado até tocar os pés da amada.

Aquele que tudo já viu, que conhece todos os secretos sem ser Walt Whitman, pois jamais tive uma barba branca como as belas enfermeiras e os riachos gelados.

Aquele que ouve durante a noite as marteladas dos moedeiros falsos, que são apenas astrônomos ativos.

Aquele que bebe o copo quente da sabedoria depois do dilúvio obedecendo às pombas e que conhece a rota do cansaço, a espuma fervente que deixam os barcos.

Aquele que conhece os armazéns de lembranças e as belas estações esquecidas.

Ele, o pastor de aeroplanos, o condutor das noites extraviadas e dos poentes adestrados em direção aos polos únicos.  

Sua queixa é semelhante a uma rede bruxuleante de aerólitos sem testemunha.

O dia se levanta em seu coração e ele desce as pálpebras para fazer a noite do repouso agrícola.

Lava as mãos no olhar de Deus, e penteia seus cabelos como a luz e a colheita dessas magras espigas da chuva satisfeita.

Os gritos se afastam como um rebanho sobre as campinas quando as estrelas dormem depois de uma noite de trabalho seguido.

O belo caçador diante do bebedouro celeste feito para os pássaros sem coração.

Sê triste como as gazelas diante do infinito e os meteoros, tal qual os desertos sem miragens.

Até a chegada de uma boca inchada de beijos para a vindima do desterro.

Sê triste, pois ela te espera em um recanto deste ano que passa.

Está talvez no extremo da tua próxima canção e será bela como a cascata em liberdade e rica como a linha equatorial.

     Sê triste, mais triste que a rosa, a bela gaiola de nossos olhares e das abelhas sem experiência.

A vida é uma viagem de paraquedas e não o que você quer que seja.

Vamos caindo, caindo do nosso zênite ao nosso nadir e deixamos o ar manchado de sangue para que se envenenem aqueles que venham amanhã respirá-lo.

Adentro de ti mesmo, afora de ti mesmo, você cairá do zênite ao nadir porque esse é seu destino, seu miserável destino. E de quanto mais alto cair mais alto será o rebote, mais longa a sua duração na memória da pedra.

Pulamos do ventre da nossa mãe ou da borda de uma estrela e assim vamos caindo.                        

Ah meu paraquedas, a única rosa perfumada da atmosfera, a rosa da morte, despencada entre os astros da morte.

Ouviram? Esse é o barulho sinistro dos peitos fechados.  

Abre a porta da sua alma e sai para respirar do lado de fora. Você pode abrir com um suspiro a porta que um dia fechou o furacão.

Homem, eis aqui teu paraquedas maravilhoso como o vértigo* (O correspondente gramaticalmente correto seria “vertigem”, mas mantive a palavra “vértigo” do espanhol pela sonoridade).

Poeta, eis aqui teu paraquedas, maravilhoso como o imã do abismo.

Mago, eis aqui teu paraquedas que uma palavra sua pode transformar em parasubidas maravilhoso como o relâmpago que queria cegar o criador.

O que esperas?

Mas eis aqui o segredo do Tenebroso que se esqueceu de sorrir.

E o paraquedas espera amarrado na porta como o cavalo da fuga interminável. 


CONTINUA......





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