quarta-feira, 11 de agosto de 2021

[Tradução] Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes - Gabriel Garcia Márquez (Colômbia)

 

Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes,   de  Gabriel Garcia Marquez  (1968)
                                                 tradução: Aureliano Caminhamar
Ao terceiro dia de chuva  haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve de atravessar seu pátio inundado para atirá-los ao mar, pois o menino recém nascido havia passado a noite com febre e se pensava que essa era a causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram um cinza só, e as areias da praia, que em março fulguravam como a poeira do fogo, haviam se convertido em um caldo de lama e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia que, quando Pelayo regressava à casa depois de ter jogado os caranguejos, deu trabalho ver o que era que se movia e se queixava lá no fundo do pátio. Teve que chegar muito perto pra descobrir que era um homem velho, que estava tombado de boca pra baixo no lamaçal, e que, apesar de seus grandes esforços, não conseguia se levantar, porque o impediam suas enormes asas.

Assustado com aquele pesadelo, Pelayo saiu correndo em busca de Elisenda, sua companheira, que estava aplicando compressas no menino enfermo, e a levou até o fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído em calado estupor. Estava vestido como um trapeiro.  Restavam-lhe apenas uns fiapos descoloridos pelo crânio pelado e muitos poucos dentes na boca e sua lastimosa condição de bisavô ensopado o havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de galo gigante, sujas e meio despenadas estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda se recompuseram muito rápido do assombro e acabaram achando-o familiar. Então se atreveram a falar-lhe, e ele respondeu em um dialeto incompreensível mas com uma boa voz de navegante. Foi assim que passaram por cima do inconveniente das asas, e concluíram com muito bom juízo que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Mesmo assim, chamaram uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte para vê-lo, e a ela bastou uma olhada para afastá-los do engano.

- É um anjo - lhes disse - Com certeza veio pelo menino, mas o pobre está tão velho que a chuva o derrubou.

 No dia seguinte todo mundo sabia que na casa do Pelayo estava cativo um anjo de carne e osso. Contrariando o critério da sábia vizinha, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não haviam tido peito pra matá-lo à pauladas. Pelayo esteve vigiando-o a tarde toda da cozinha, armado com seu cacete de alguacil [oficial de justiça de baixa patente]  e antes de ir se deitar o arrastou do lamaçal e trancou-o com as galinhas no galinheiro de arame. À meia-noite, quando a chuva terminou, Pelayo e Elisenda seguiam matando caranguejos. Pouco depois o menino despertou sem febre e querendo comer. Então se sentiram magnânimos e decidiram botar o anjo em uma jangada com água doce e provisões para três dias e abandoná-lo à sua sorte em alto mar. Mas quando saíram pro pátio com as primeiras luzes da manhã, encontraram toda a vizinhança em frente ao galinheiro, brincando com o anjo sem a menor devoção e jogando-lhe coisas de comer pelos vazios do arame, como se não fosse uma criatura sobrenatural e sim um 
animal de circo.

O padre Gonzaga chegou antes das sete sobressaltado com a desproporção da notícia. A esta hora já haviam acudido curiosos menos frívolos que os do amanhecer, e haviam feito toda classe de conjecturas sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado prefeito do mundo. Outros, de espirito mais áspero, supunham que ascenderia à general de cinco estrelas para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que havia sido conservado como semental [reprodutor, garanhão] para implantar na terra uma estirpe de homens alados e sábios que assumiriam o controle do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser pároco, havia sido lenhador maciço. Aproximando-se do alambrado do galinheiro repassou em um instante seu catecismo, e ainda pediu que lhe abrissem a porta para examinar de perto aquele varão de se lastimar que mais parecia uma enorme galinha decrépita em meio às galinhas absortas. Estava deitado em um canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de fruta e as sobras de café da manhã que lhe haviam arremessado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, apenas ergueu seus olhos de antiquário e murmurou algo em seu dialeto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu bom dia em latim. 

O pároco começou a suspeitar que ele era um impostor ao comprovar que não entendia a língua de Deus e não sabia saudar os seus ministros. Logo observou que visto de perto resultava demasiado humano: tinha um insuportável odor de intempérie, a trás das asas semeadas de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada de sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro, e com um breve sermão preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Lhes recordou que o demônio tinha o mal costume de recorrer a artifícios de carnaval para confundir aos incautos. Argumentou que se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos podiam ser para reconhecer aos anjos. Mesmo assim, prometeu escrever uma carta à seu bispo, para que este escrevesse outra à seu primado e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de modo que o veredito final viria dos mais altos tribunais.

Sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo se divulgou com tanta rapidez que em poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram que levar a tropa com baionetas pra espantar o tumulto que já estava a ponto de tombar a casa. Elisenda, com a coluna torta de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de fechar com taipas o pátio e cobrar cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou zumbindo várias vezes por de cima da multidão, mas fizeram pouco caso dele porque suas asas não eram de anjo e sim de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais desgraçados do Caribe: uma pobre mulher que desde menina esteve contando os latidos de seu coração e já não lhe bastavam os números, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite e desfazia as coisas que havia feito desperto, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana abarrotaram de dinheiro os quartos, e ainda assim a fila de peregrinos que esperavam  sua vez de entrar chegava até o outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava de seu próprio acontecimento. Seu tempo se esvaia em buscar aconchego no ninho emprestado, aturdido pelo calor infernal das lâmpadas de azeite e das velas de sacrifício que aproximavam do alambrado. A princípio trataram de que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele os depreciava, assim como depreciou sem provar os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por anjo ou por velho que terminou comendo nada além de papinhas de berinjela. Sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando as galinhas o bicavam em busca dos parasitas estelares que proliferavam em suas asas, e os aleijados lhe arrancavam penas para tocar com elas seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras fazendo com que se levanta-se para poderem vê-lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram alterá-lo foi quando lhe queimaram as costelas com um ferro de marcar novilhos, porque estava a tantas horas imóvel que acreditaram estar morto. Despertou sobressaltado, disparatando em língua hermética  e com os olhos em lágrimas, e deu um par de golpes de asa que provocaram um redemoinho de esterco de galinheiro e poeira lunar, e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Ainda que muitos acreditassem que sua reação não havia sido de raiva e sim de dor, desde então deixaram de molestá-lo, porque a maioria entendeu que sua passividade não era a de um herói em férias e sim a de um cataclismo em repouso.

O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto não lhe chegava um juízo definitivo sobre a natureza do cativo.  Mas o correio de Roma havia perdido a noção da urgência. Seu tempo se esvaia em averiguar se o réu tinha umbigo, se seu dialeto tinha algo a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta de um alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas parcimoniosas teriam ido e vindo até o fim dos séculos, se um acontecimento providencial não houvesse posto fim às tribulações do pároco. Sucedeu que por aqueles dias, dentre muitas outras atrações das feiras errantes do Caribe, levaram ao povoado o triste espetáculo da mulher que havia se convertido em aranha por desobedecer a seus pais. A entrada para vê-la não só custava menos que a entrada para ver ao anjo, como também permitiam fazer à ela toda classe de perguntas sobre sua absurda condição, e examiná-la de cima a baixo, de modo que ninguém pôs em dúvida a verdade do horror.  Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Mas o mais desolador não era sua figura absurda e sim a sincera aflição com que contava os pormenores de sua desgraça: sendo quase uma menina havia escapado da casa de seus pais para ir a um baile, e quando regressava pelo bosque depois de haver dançado a noite toda sem permissão, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades, e por aquela rachadura saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. Seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caridosas quiseram jogar-lhe na boca. Semelhante espetáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha que derrotar sem propor-se a tanto o de um anjo depreciativo que apenas se dignava a mirar os mortais. 

Ademais, os escassos milagres atribuídos ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recobrou a visão mas lhe saíram três dentes novos,  e o do paralitico que não pôde andar mas esteve a ponto de ganhar na loteria, e o do leproso à quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação que bem mais pareciam entretenimentos zombeteiros, já haviam quebrantado a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha terminou de aniquilá-la. Foi assim que o padre Gonzaga se curou para sempre da insônia, e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos caminhavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada de que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de duas plantas, com varandas e jardins, e com muretas muito altas para que não se metessem os caranguejos do inverno, e com barras de ferro nas janelas pra que não se metessem os anjos.

Pelayo estabeleceu um criadouro de coelhos muito perto do povoado e renunciou para sempre a seu mal emprego de alguacil, e Elisenda comprou pra si umas sapatilhas acetinadas de saltos altos e muitos vestidos de seda tornasol, dos que usavam as senhoras mais cobiçadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi o único que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e queimaram as lágrimas de mirra em seu interior, não foi por honra ao anjo e sim pra acabar com a pestilência da esterqueira que já andava como um fantasma pra todo lado e estava voltando a ser velha a casa nova. A princípio, quando o menino aprendeu a andar, cuidaram que não se aproximasse do galinheiro. Mas logo foram esquecendo-se do temor e acostumando-se à peste, e antes mesmo de trocar os dentes o menino havia se metido a brincar dentro do galinheiro, cujo alambrado podre caía aos pedaços. O anjo não foi menos displicente com ele que com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansidão de cachorro sem ilusões. Ambos contraíram a catapora ao mesmo tempo. O médico que atendeu ao menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo, e lhe encontrou tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins, que não lhe parecia possível que estivesse vivo. O que mais lhe assombrou, no entanto, foi a lógica de suas asas. Resultavam tão naturais naquele organismo completamente humano, que não era possível entender porque não as tinham também os outros humanos.

Quando o menino foi pra escola, fazia muito tempo que o sol e a chuva haviam destruído o galinheiro. O anjo andava arrastando-se pra lá e pra cá como um moribundo sem dono. O sacavam a vassouradas de um dormitório e um momento depois o encontravam na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo, que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava fora de si que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Ele apenas podia comer, seus olhos de antiquário haviam virado tão turvos que andava tropeçando com suas articulações, e não lhe restava nada além das pontas peladas das últimas plumas. Pelayo jogou em cima dele uma manta e lhe fez a caridade de deixá-lo dormir no galpão, e só então perceberam que passava a noite com febre delirando em travalínguas de norueguês velho. Foi esta uma das poucas vezes que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer, e nem sequer a vizinha sábia havia podido lhes dizer o que se fazia com os anjos mortos.

No entanto, ele não só sobreviveu a seu pior inverno como também pareceu estar melhor com os primeiros sóis. Ficou imóvel muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém podia vê-lo, e em princípios de dezembro começaram a nascer-lhe nas asas umas plumas grandes e duras, plumas de pajarraco velho, que mais pareciam um novo acidente da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tomava muito cuidado que ninguém o notasse, e de que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas. 

Uma manhã, Elisenda estava cortando fatias de cebola para o almoço, quando um vento que parecia de alto mar se meteu na cozinha. Então se assomou pela ventana, e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas de voo. Eram tão torpes, que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve a ponto de destruir o telhado com aquele bater de asas indigno que resvalava na luz e não encontrava asilo no ar. Mas logrou ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de descanso, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando-se de qualquer jeito com um azaroso vibrar de asas de abutre senil. Seguiu vendo-o até quando acabou de cortar a cebola, e seguiu vendo-o até quando já não era possível que o pudesse ver, porque então já não era um estorvo em sua vida, e sim um ponto imaginário no horizonte                                                     do                                              mar.




imagem encontrada em https://wanderingbakya.com/un-senor-viejo-con-unas-alas-enormes-a-very-old-man-with-enormous-wings/

esta tradução foi pubLICADA NA TRANSGRESSOAR UM, de fevereiro de dois mil e vinteum


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