Editora Maracaxá
tradução, transcriação y artesanalidades. coletivo editorial independente na luta contra as estruturas coloniais î colonizantes. aqui se fazem impressos pela transformação da cultura
quarta-feira, 11 de agosto de 2021
[Tradução] Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes - Gabriel Garcia Márquez (Colômbia)
sábado, 7 de agosto de 2021
[Tradução] Altazor (ou a viagem de paraquedas) - Vicente Huidobro (Chile)
ALTAZOR: UM POEMA DE VICENTE HUIDOBRO EM VII CANTOS, TRADUÇÃO DE GONZALO DÁVILA [publicação em série - nº 1]
Prefácio:
Nasci aos trinta e três anos, no dia da morte de Cristo; nasci no Equinócio, sob as hortênsias e os aeroplanos de calor.
Tinha eu um olhar profundo de pardal, de túnel e de automóvel emotivo. Lançava suspiros de acrobata.
Meu pai era cego e suas mãos eram mais admiráveis que a noite.
Amo a noite, chapéu de todos os dias.
A noite, a noite do dia, do dia ao dia seguinte.
Minha mãe falava como a aurora e como os dirigíveis que estão prestes a cair. Tinha cabelos cor de bandeira e olhos cheios de navios distantes.
Numa tarde, peguei meu guarda-chuva e disse: “Entre uma estrela e duas andorinhas,” Eis aqui a morte que se aproxima como a terra à esfera que cai.
Minha mãe bordava lágrimas desertas nos primeiros arco-íris.
E agora o meu guarda chuvas cai de sonho em sonho pelos espaços da morte.
No primeiro dia encontrei um pássaro desconhecido que me disse: “Se eu fosse um dromedário eu não ia ter sede. Que horas são?” Bebeu as gotas de orvalho dos meus cabelos, me lançou três olhares e meio e se afastou dizendo: “adeus” com seu lencinho soberbo,
Por volta das duas horas daquele dia, encontrei um
belo aeroplano, cheio de caracóis e escamas. Buscava um canto no céu onde
proteger-se da chuva.
Ao longe, todos os barcos ancorados, na tinta da
aurora. De repente, começaram a desprender-se, um por um, arrastando como um
pavilhão pedaços da aurora incontestável.
Ao se porem em marcha os últimos, a aurora
desapareceu atrás das ondas desmesuradamente inflamadas.
Então ouvi falar o Criador. Sem nome, que é um
simples buraco no vazio, belo como o mais belo dos umbigos.
“Fiz um grande barulho e esse barulho formou o
oceano e as ondas do oceano.”
“Esse barulho irá sempre grudado nas ondas do mar e
as ondas do mar sempre irão grudadas nele, como os selos dos cartões postais.”
“Depois teci um longo barbante de raios luminosos
para costurar os dias um por um; os dias que têm um oriente restituído ou
legítimo, porém indiscutível.”
“Depois tracei a geografia da Terra e as linhas da mão."
“Depois bebi um pouco de conhaque (por causa da
hidrografia)."
“Depois criei a boca e os lábios da boca, para
aprisionar os sorrisos furtivos e os dentes da boca, para vigiar os palavrões
que nos chegam à boca."
“Criei a língua da boca que os homens desviaram de seu fim, fazendo-a aprender a falar... a ela, a bela nadadora, desviada para sempre de sua função aquática e puramente acariciadora.”
Meu guarda-chuva começou a cair vertiginosamente. Assim é a força da atração da morte e do sepulcro aberto.
Acredite, a sepultura tem mais poder que os olhos da amada. A sepultura aberta com todos seus imãs. E isso te digo a ti, a ti que quando sorri me faz pensar no começo do mundo.
Meu guarda-chuva ficou preso em uma estrela já
extinta que seguia teimosamente a sua órbita, como se ignorasse a inutilidade
de seus esforços.
E aproveitando essa pausa bem ganha, comecei a
preencher com pensamentos profundos as casas do meu
tabuleiro:
“Os poemas verdadeiros são incêndios. A poesia se
propaga por todas as partes, iluminando suas consumações com estremecimentos de
prazer ou de agonia.
“Se deve escrever em uma língua que não seja
materna.
“Os quatro pontos cardinais são três: o norte e o
sul.
“Um poema é uma coisa que será.
“Um poema é uma coisa que nunca é, mas que deveria
ser.
“Um poema é uma coisa que nunca foi, que nunca
poderá ser.
“Foge do sublime externo, se você não quer ser
esmagado pelo vento.
“Se eu não fizesse pelo menos uma loucura por ano,
eu ficaria louco.”
Pego meu guarda-chuva, e da borda da minha estrela
em marcha, me lanço à atmosfera do último suspiro.
Rodopio interminavelmente sobre as rochas dos
sonhos, rodopio entre as nuvens da morte.
Encontro a Virgem sentada em uma rosa, e ela me
fala:
“Olha minhas mãos: são transparentes como as
lâmpadas. “Você não vê esses fios de onde corre o sangue de minha luz toda
intacta?
“Olha minha aureola. Ela tem algumas varizes, o que
comprova a minha velhice.
“Sou a Virgem, a Virgem sem mancha de tinta humana,
a única que não foi feita pela metade, e sou a capitã das outras onze mil que
estavam na verdade por demais restauradas.
“Falo uma língua que preenche os corações segundo a
lei das nuvens comunicantes.
“Digo sempre adeus, e permaneço.
“Ama-me, filho meu, pois adoro a tua poesia e te
ensinarei proezas aéreas.
Tenho tanta necessidade de ternura, beija meus
cabelos, lavei eles esta manhã nas nuvens da aurora e agora quero dormir sobre
o colchão da neblina intermitente.
“Meus olhares são um arame no horizonte para o
descanso das andorinhas.
“Ama-me.”
Me pus de joelhos no espaço circular e a Virgem se
alçou e veio sentar-se em meu paraquedas.
Adormeci e recitei então meus mais belos poemas.
As chamas de minha poesia secaram os cabelos da
Virgem, que me deu obrigado e se afastou, sentada sobre sua rosa amolecida.
E eis-me aqui,
só, como o pequeno órfão dos naufrágios anônimos.
Ah, que belo...
que belo...
Vejo as
montanhas, os rios, as selvas, o mar, os barcos, as flores e os caracóis.
Vejo a noite e o eixo em que se juntam.
Ah, ah, sou
Altazor, o grande poeta, sem cavalo que coma alpiste, nem esquente sua garganta
com claro de lua, a não ser com meu pequeno paraquedas como um guarda-sol sobre
os planetas.
De cada gota de suor da minha testa fiz que
nascessem estrelas, as quais deixo a vocês a tarefa de batizar como a garrafas
de vinho.
Eu vejo tudo, meu cérebro está forjado nas línguas
de profeta, termômetro inchado até tocar os pés da amada.
Aquele que tudo já viu, que conhece todos os
secretos sem ser Walt Whitman, pois jamais tive uma barba branca como as belas
enfermeiras e os riachos gelados.
Aquele que ouve durante a noite as marteladas dos
moedeiros falsos, que são apenas astrônomos ativos.
Aquele que bebe o copo quente da sabedoria depois do
dilúvio obedecendo às pombas e que conhece a rota do cansaço, a espuma fervente
que deixam os barcos.
Aquele que conhece os armazéns de lembranças e as
belas estações esquecidas.
Ele, o pastor de aeroplanos, o condutor das noites
extraviadas e dos poentes adestrados em direção aos polos únicos.
Sua queixa é semelhante a uma rede bruxuleante de
aerólitos sem testemunha.
O dia se levanta em seu coração e ele desce as
pálpebras para fazer a noite do repouso agrícola.
Lava as mãos no olhar de Deus, e penteia seus
cabelos como a luz e a colheita dessas magras espigas da chuva satisfeita.
Os gritos se afastam como um rebanho sobre as
campinas quando as estrelas dormem depois de uma noite de trabalho seguido.
O belo caçador diante do bebedouro celeste feito
para os pássaros sem coração.
Sê triste como as gazelas diante do infinito e os
meteoros, tal qual os desertos sem miragens.
Até a chegada de uma boca inchada de beijos para a
vindima do desterro.
Sê triste, pois ela te espera em um recanto deste
ano que passa.
Está talvez no extremo da tua próxima canção e será
bela como a cascata em liberdade e rica como a linha equatorial.
Sê triste, mais triste que a rosa,
a bela gaiola de nossos olhares e das abelhas sem experiência.
A vida é uma viagem de paraquedas e não o que você
quer que seja.
Vamos caindo, caindo do nosso zênite ao nosso nadir
e deixamos o ar manchado de sangue para que se envenenem aqueles que venham
amanhã respirá-lo.
Adentro de ti mesmo, afora de ti mesmo, você cairá
do zênite ao nadir porque esse é seu destino, seu miserável destino. E de
quanto mais alto cair mais alto será o rebote, mais longa a sua duração na
memória da pedra.
Pulamos do ventre da nossa mãe ou da borda de uma
estrela e assim vamos caindo.
Ah meu paraquedas, a única rosa perfumada da
atmosfera, a rosa da morte, despencada entre os astros da morte.
Ouviram? Esse é o barulho sinistro dos peitos
fechados.
Abre a porta da sua alma e sai para respirar do lado
de fora. Você pode abrir com um suspiro a porta que um dia fechou o furacão.
Homem, eis aqui teu paraquedas maravilhoso como o vértigo* (O correspondente gramaticalmente correto seria “vertigem”, mas mantive a palavra “vértigo” do espanhol pela sonoridade).
Poeta, eis aqui teu paraquedas, maravilhoso como o
imã do abismo.
Mago, eis aqui teu paraquedas que uma palavra sua
pode transformar em parasubidas maravilhoso como o relâmpago que queria cegar o
criador.
O que esperas?
Mas eis aqui o segredo do Tenebroso que se esqueceu
de sorrir.
E o paraquedas espera amarrado na porta como o
cavalo da fuga interminável.
CONTINUA......
sexta-feira, 6 de agosto de 2021
O QUE É TRANSGRESSOAR?
a TRANSGRESSOAR [TRANSGRESSÃO + SOAR]
é uma revista de transcriação, tradução, arte e comunicação
surgida a partir do transpassar de dois projetos idealizadosmas não materializados:
uma coletânea de contos traduzidos
&
uma revista de artes visuais
- inspirades pelas revistas independentes de arte e literatura do passado e do presente, nós da Maracaxá víamos como necessário e possível a abertura de um novo caminho impresso, enquanto ainda iniciávamos as costuras e publicações de nossos primeiros livros, íamos pensando na propositura de uma re-vista da arte contemporânea, um lugar pra expressões que geralmente não víamos receber o devido espaço na literatura e na história impressa, por TRANSGREDIREM o status quo, a norma imposta, a colonização dos corpos e mentes, por refletirem, a fundo, e proporem algo ancestral ou novo, uma nova luz para iluminar a História e as estórias, um novo jeito de escrever, uma nova ou ancestral maneira de ver, sentir e viver as coisas. sonhávamos em circular uma revista que tivesse como cerne o exercício da tradução e o reavivar da importância das revistas independentes enquanto divulgadoras de gente nova, gente que instintivamente está escrevendo, desenhando, pintando, gravando e recriando a realidade desordenada em processos artísticos alquímicos, gente que está COMUNICANDO a realidade pela arte, que está começando a propor algo nesse sentido, a se reconhecer enquanto artista, ou que ainda só não teve a chance de publicar. Uma revista assim, entalhada na carne do mundo, de repente, pela urgência histórica de sua significação, há de se fazer acontecer..., pensávamos na época.
depois aconteceu que eu, Pedro, estava lendo, por acaso, numa mesma semana, o conto e o artigo de arte que eram a inspiração primordial para os 'projetos idealizados' ditos acima, parados que estavam em alguma gaveta da memória das gentes desta editora. Um senhor muito velho com umas asas enormes, de Gabriel Garcia Márquez e A Andromeda Negra, de Elizabeth McGrath. A solução para minha inquietude ao relembrar projetos desconexos, mas que traziam 'sensações estéticas' semelhantes, foi pensar em alguma publicação, algum conceito unificador que abarcasse essas duas traduções (uma dum texto de 1972 e a outra de 1992). Lancei a ideia pro pessoal e depois de muito pensar, estudar e conversar, relembramos daquela ideia antiga e estávamos decidides a articular e instigar o surgimento de uma revista impressa que abarcasse a multiplicidade dos meios de expressão artística, com uma alta diversidade de vozes, e que não fosse nem um pouco tradicional ou copiadora de qualquer fórmula já assimilada, que inventasse e reinventasse sempre seus métodos e sua cara, seu "trejeito" desde a tipografia na diagramação na escolha da fonte na técnica escolhida pra encadernar até o conteúdo nas relações entre as linguagens os temas, em suma, a proposta estética inteira da publicação que germinávamos deveria se propor a ser transgressora, inclusive em relação a si mesma. Como objeto e como conceito.
Daí para o nome foi um pulo, pois 't r a n s g r e s s o a r' já existia antes da revista, tendo sido escrita e pixada por mim, Pedra, em vários locais da cidade, como no Barracão de Teatro da Unicamp, ou no banheiro do terminal de ônibus do centro, e estávamos todes da editora na época, além de traduzindo muito, caminhando pelas vias da transcriação, tanto na arte (entrelaçando os formatos, recriando verves) quanto na existência (reeditando condutas, re-existindo verbos). Redigimos a partir daí uma chamada aberta, na qual explicitamos a postura de abrir espaço impresso para "vozes geralmente marginalizadas, arte decolonial, arte livre, traduções e comunicações artísticas de todas as áreas" em uma publicação artesanal.
Para nossa surpresa, muitas pessoas enviaram suas artes e reflexões. Tanto que, no fim das contas, acabamos não publicando a tradução inédita para o português da Andromeda Negra na Transgressoar 1, pois faltou espaço. Pode-se dizer que não houve uma 'curadoria', no sentido tradicional do termo. A quase totalidade das artes recebidas foi publicada. Buscamos construir uma "narrativa" no sentido de estabelecer uma continuidade apenas para ambientar quem lê e vê entre tantos universos de expressão, uma espécie de conversa estrutural, da revista com a pessoa, onde buscamos ressaltar a diversidade e não apagá-la. Não houve 'tema geral' ou limitações de qualquer natureza. A diversidade foi, num geral, uma constante. Pois não de outra forma o editorial desta edição, publicada em fevereiro deste ano, afirma: a transgressoar sempre será um espaço de expressão de novas epistemologias e desconstrução de condutas e ideias retrógradas, conservadoras, e também um espaço para o encontro e a troca, a subversão y a igualdade, a soma e o dialogo livre, a construção e a desconstrução artística, enfim, um espaço aberto para o criar, o existir, o traduzir, o transcriar, o reivindicar transformador
(;;;)
esta revista é uma maneira de registrar uma parte dessa
informação-movimentoevolução-transformar que está
acontecendo perante nossos olhos e da qual somos geratriz
da criação, queira-se ou não queira-se
A materialização da Transgressoar um trouxe tanta alegria e tanto aprendizado para nós e tantas outras gentes que pouco depois já começamos à editar a Transgressoar dois, com alguns textos que não couberam na primeira edição e outros recebidos depois. Ela deve sair na semana que vem.
Uma publicação bem diferente da anterior
pois a transgressoar transgrediu-se
Agora, este texto, definitivamente, não responde a pergunta: O que é Transgressoar? Esta ainda é uma pergunta que não sei responder...
Logo logo, este mês ainda, será publicada a Transgressoar 2. Depois disso disponibilizaremos a Transgressoar 1 para download gratuito, e no futuro, talvez (tudo indica que sim), uma audiodescrição dela, aberta pra toda gente. Por enquanto, dá pra ver mais sobre ela aqui:
https://www.instagram.com/editoramaracaxa/
capa da Transgressoar 2 mostra os destroços de um depósito de pinturas que pegou fogo
a queima de museus e acervos culturais tem sido coisa comum no Brasil
é um projeto, parece
'Um senhor muito velho com umas asas enormes' foi publicado na Transgressoar 1.
A tradução inédita para o português de 'A Andromeda Negra' será publicada na Transgressoar 2
Este relato faz parte de uma série de relatos que se propõem a falar sobre as atividades da Maracaxá
quarta-feira, 14 de julho de 2021
[Tradução] A história da Viagem de LSD de Michel Foucault
A HISTÓRIA DA VIAGEM DE LSD DE FOUCAULT
por Mitchell Dean e Daniel Zamora
[tradução de Tereza Uirapuru]
Na primavera de 1975, Michel Foucault começava a reivindicar seu posto como grande intelectual francês do século vinte. Ele estava prestes a publicar o primeiro volume do trabalho que agarraria esse rótulo para si, “História da Sexualidade”. De saco cheio da conformista e enrustida cultura francesa da época, ele procuraria novamente refúgio em outros lugares, continuando um padrão de sua vida adulta que o havia levado para a Suécia, Polônia e depois Tunísia, onde viveu maio de 68. Ele ficou tão tomado pela atmosfera libertária de São Francisco que ponderou emigrar e virar californiano. Parece então que Foucault se apaixonou pela Califórnia. Foi lá que o austero pensador anti-humanista dos anos 60, que havia proclamado a “morte do homem” em aberta hostilidade à filosofia de liberdade de Jean Paul Sartre, experimentaria, durante a década final da sua vida, novas formas de relatar aos outros e se reinventar, nos clubes de São Francisco.
É dito que foi lá também que ele se tornou o “último homem” a tomar LSD (ácido lisérgico). Foucault descreveu o evento como uma “experiência grandiosa, uma das mais importantes da minha vida.” Ainda que o filósofo francês só muito tarde na vida tenha feito experimentos com alucinógenos, enquanto muitos outros depois “dropariam ácido” (assim eram chamadas as “viagens” pessoais desse tipo), seu apogeu cultural aconteceu no fim dos anos 60, e, nesse sentido, Foucault foi o “último homem” intelectual conhecido da época a tomar LSD na primeira onda coletiva do seu uso como uma substância de expansão da consciência. Ele havia sido precedido por Timothy Leary, Aldous Huxley, Allen Ginsberg e muites outres. Dropar ácido era o que fazia a juventude que experenciava a contracultura no fim dos anos 60 na Califórnia. Entre 1964 e 1966, o escritor Ken Kesey e sua trupe “Merry Pranksters” viajaram pelos Estados Unidos em um ônibus psicodélico, parando regularmente pra organizar festas de LSD. Estes “testes com ácido” seriam o salto para o surgir da geração beat e do movimento hippie nos anos seguintes. Sem dúvida o LSD e outros psicodélicos continuaram sendo usados, com variações e às vezes prevalências, mas nunca mais o ácido lisérgico, e a experiência trazida por ele, definiu cultura, arte, moda e estética num geral como o fez no fim dos anos 60.
As suas qualidades de alteração da percepção foram concebidas na época em parte como profunda autoanalise e psicoterapia e em parte como experiência religiosa intensa. Timothy Leary fundaria até mesmo uma igreja, a “League for Spiritual Discovery” (liga para a descoberta espiritual) que tinha o LSD como sacramento, e o próprio Foucault concorda que a experiência foi “mística”, oferecendo a ele “visões de uma nova vida” e “uma perspectiva renovada” de si mesmo.
Alguns meses depois, em uma carta à Simeon Wade, o jovem acólito que o havia convidado a tomar a substância, Foucault escreveu que a experiência o havia levado a reescrever inteiramente o primeiro volume de “História da Sexualidade”. Ele deixou de lado centenas de páginas já prontas, jogou o segundo volume inteiro no fogo e então abandonou os rascunhos do trabalho de múltiplos volumes. Com exceção do primeiro volume, que se tornou um manifesto para o emergente movimento queer na Califórnia e em outros lugares, nenhum dos outros volumes foi publicado em sua forma inicial.
Foucault foi até a “Claremont Graduate School” no sul da Califórnia durante a primeira das várias visitas de pesquisa que fez à Berkeley. Dada a natureza relativamente obscura da instituição, sua presença só pode dever-se à insistência de Wade, o autor de uma fanzine independente chamada Chez Foucault. Foucault é retratado lá com seu suéter branco e óculos de sol branco de aros amplos que o faziam parecer uma mistura de Kojak com Elton John.
Acompanhado por seu amor e companheiro, o pianista Michael Stoneman, Wade levaria Foucault a uma jornada que culminou na viagem de ácido em “Zabriskie Point”, no “Death Valley” (Vale da Morte), os remanescentes desérticos de um lago que secou há 5 milhões de anos atrás. O celebrado cineasta italiano, M. Antonioni, havia começado a filmar ali seu clássico californiano, Zabriskie Point, em 1968, tendo como pano de fundo os protestos des estudantes, o movimento des Panteras Negras, cultura psicodélica e liberação sexual. Seu filme incluía uma orgia no local. Em maio de 1975, podemos supor que era menos um evento de vanguarda estética que um clichê hippie dropar ácido lá. Ao menos o trio encontrou uma trilha sonora mais sofisticada para seus devaneios que Antonioni, substituindo Pink Floyd e Grateful Dead por fitas de Richard Strauss, Stockhausen e Pierre Boulez. Foucault tomou ácido nos espasmos finais de um período em que o LSD era considerado “exercício espiritual”, e que logo foi substituído pelo empreendedorismo movido à cocaína das discos e boates do fim dos anos 70.
O efeito em Foucault foi profundo. Ele inclusive alteraria radicalmente a direção de suas pesquisas nos anos seguintes.
Quando ele finalmente publicou o segundo e o terceiro volumes da História da Sexualidade quase oito anos depois, o projeto colocou como central as “técnicas do self” que ele havia descoberto na ética da grécia clássica e da roma antiga. Ao invés de estudar a sexualidade através dos paradoxos de repressão e confissão herdados do cristianismo, ele insere na reflexão as múltiplas e diferentes maneiras que os humanos podem ver a si mesmos, governar a si mesmas, e como buscam os humanos moderar, controlar ou liberar, dependendo do caso, o que é considerado como prazeres, desejos ou tentações da carne. O que chamam “sexualidade” não seria mais vista como uma verdade profunda a ser descoberta interiormente ou inconscientemente, como Freud acreditava. é simplesmente mais um caminho em que nos reinventamos como seres humanos em relação com o erotismo, o lar e a família, o dia a dia e a ética.
Dada a sua relatividade histórica, e suas relações com a cultura confessional do cristianismo medieval, a sexualidade era algo que os antigos podiam nos ajudar a escapar, ou, como Foucault com frequência pontuava, algo a partir do qual podemos pelo menos “pensar de outra forma”. Nós não devemos libertar nossa sexualidade mas libertar a nós mesmos de todo esse sistema confessional que fez surgir essa libertação baseada na sexualidade.
Não seria injusto dizer que durante os anos 60 Foucault participou da obsessão de um certo tipo de filosofia francesa em tirar fora o “subject” [em inglês “sujeito” mas também “objeto” de pesquisa ou “assunto”], um termo estranho que é tanto técnico quanto obscuro. Rejeitar o sujeito (o “self”), anunciar sua morte ou a morte da autoria, se tornou coisa comum no discurso e na teoria literária de Foucault, Barthes, Derrida e companhia. Nos anos 70, o “sujeito” foi explicado não apenas como um tipo de ficção dos pronunciamentos das ciências sociais e comportamentais, mas como resultado da aplicação de tais pseudociências dentro do que estadunidenses como Erving Goffman chamavam de “instituições totais” do asilo; o hospital, a escola e, acima de todas, a prisão.
O escândalo do trabalho de Foucault sobre prisões (Vigiar e Punir, 1975), por exemplo, foi a sua substituição da ideia de que elas [prisões] podem deformar e brutalizar o sujeito humano, pela alegação de que em sua busca por maior humanismo elas fabricavam os próprios sujeitos que dominavam e subjugavam.
Depois de suas experiências na California e sua exposição ao “culto californiano do self”, entretanto, o “subject” de Foucault se tornou livre, um agente ativo capaz de fazer-se através de exercícios físicos e espirituais, e com o potencial para a autotransformação radical por meio das experiências extremas. “Fazer do ‘princípio do prazer’ um ‘princípio de realidade’ é um problema ético e político a ser resolvido na atualidade”, escreveu Foucault para Wade. Nesse sentido, engajar-se em aventuras eróticas, experimentos psicotrópicos e na “invenção” de novos estilos de vida tornou possível a transgressão do sujeito padronizado produzido pelas instituições do moderno “welfare state”. Pra colocar isto em termos de neoliberais estadunidenses, Foucault fazia a leitura na época: o “empreender do ‘self’” estava tendendo a colocar sua própria identidade em risco no ato da “self-criação”.
(esta tradução será publicada de maneira impressa e com outra diagramação na Transgressoar nº2 - tradução-transcriação-arte-comunicação, que sai ainda neste mês de julho)
domingo, 27 de junho de 2021
VANGUARDA?????
O que é historicamente considerado "vanguarda" senão uma galera privilegiada que pôde estudar e focar apenas em arte e inevitavelmente chegou a novas conclusões, novas linguagens etc? Enquanto que a vanguarda na verdade é um movimento coletivo, uma coisa assim que se sente no ar e que se comunica e está comunicando com toda gente, é como uma condensação do espirito da época com as necessidades artísticas dessa mesma época, e lugar. O que quero dizer? Que o que é conhecido como vanguarda artística é apenas a comunicação em termos estruturados de uma descoberta ou uma inovação que dorme, latente ou difusamente desperta, no coração de toda a geração.
quarta-feira, 21 de abril de 2021
CURAR O COLECIONISMO
pingente criado entre os anos 500 e 1500 por gentes nativas de Abya Yala
roubado e agora guardado no Museu do Ouro de Bogotá. foi, junto a outras obras de
arte ritual indígena cedida à Pinacoteca no ano de 2010 para a exposição "Ouros do eldorado"
Curar o colecionismo
de Alexander Herrera Wassilowsky
em Gaceta do Centro de Investigación
y Creación de la Universidad de los Andes, número 3, 2017, Bogotá, Colômbia
(tradução deTereza Uirapuru)
O colecionismo
é uma enfermidade comum, antiga e contagiosa de que sofrem muitas instituições
e indivíduos, também universidades e eu. Usualmente se manifesta na juventude
com um número reduzido de conchas ou rochas recolhidas junto a algum rio ou
praia, mas com frequência se estabelece, se transforma e cresce durante toda a
vida, podendo inclusive chegar a ser hereditária. À diferença do colecionismo
de pedras, chaveiros, moedas ou livros, a acumulação exclusiva e excludente de
peças de arte pré-hispânica se insere em uma larga tradição de destruição e
alienação das bases materiais da história indígena. Se a história nos ajuda a
aprender do passado poderia falar-se de uma enfermidade autoimune de origem
colonial. Seu sintoma mais diagnóstico é a guaquería: o saque de sítios
arqueológicos para buscar tumbas e oferendas indígenas que contenham peças de
valor. Desconhecemos a maneira de extirpar esta enfermidade, mas sabemos que é
possível contê-la e necessário estuda-la, e sabemos também que os museus e as
coleções museográficas universitárias podem exercer um papel chave no processo
de cura(ção).
Etiologia do
colecionismo
Os
conquistadores não demoraram muito pra perceber que os objetos mais apreciados
pelos nativos de América eram feitos para, e depositados com, os difuntos, pois
estes com frequência incluíam objetos de metal. Mesmo se tratando geralmente de
ligas com cobre como base, as notícias de metais preciosos em grandes
quantidades em terras “americanas”, atiçadas pelo Inca Atahualpa com o inútil
pagamento de seu próprio resgate, despertaram a cobiça de um continente e deram
alento a fábulas que animaram jovens europeus a deixar o continente todo e
cruzar o oceano em busca de tesouros. Este afã de tesouro é o mesmo vetor de
contágio que encoraja camponeses e ministros, professoras rurais, diplomatas e
monges, a buscar e comprar peças arqueológicas em toda a América Latina.
Em que pese as
duvidas iniciais entre setores do clero em torno da legalidade da profanação
das tumbas dos “indios” por sua condição de pagãos ou “gentis”, a prática
prontamente se instaurou. No século XVII os “manuais” para a “extirpação de
idolatrias” recomendavam queimar o conteúdo, com exceção dos ossos, em
fogueiras públicas, as quais as vezes eram tão grandes que lugares como Infernillo
e Cerro Purgatorio mudaram de nome para sempre. A intensidade da
destruição associada à cristianização forçada durante as campanhas de
perseguição religiosa varia de região pra região, mas as marcas na paisagem
ainda são reconhecíveis. Peninsulares, mestiços, indios e escravos participaram
da guaqueria por distintos motivos ao longo de três séculos,
tempo durante o qual a guaqueria passou a converter-se em uma forma de
minério, prontamente regulado para assegurar o dizimo da coroa.
Paradoxalmente,
é nesse contexto que surgem as primeiras coleções de objetos de arte
pré-hispânica, apenas mencionadas em testamentos pobremente estudados. Dada a
importância histórica da passagem de uma valorização claramente mercantil e
centrada no metálico dos objetos “pagãos” -o impacto do deslumbramento original
monumentalizado nos “museus do ouro” de Bolívia, Peru, Equador e Colômbia- a um
reconhecimento de seu valor estético, mnemônico e histórico, esta falta de
estudos é surpreendente.
Um segundo
giro nas trajetórias de valoração do que hoje chamamos patrimônio, uma
transformação desta enfermidade colonial, surge com a chegada do projeto ilustrado
no século XVIII. Com as gestas de independência e a formação das republicas
sul-americanas, a enfermidade colonial se transforma, pois se consolida o
reconhecimento de que os objetos do passado não só podem ter um valor estético,
mas também um valor histórico e testemunhal que independe da estética. E é
nesta variante da enfermidade -a busca do conhecimento mediada pela acumulação,
mais ou menos sistemática e ordenada, de objetos de atraente exotismo- onde se
situam os museus nacionais, assim como uma grande quantidade de coleções
particulares como aquela de 1070
objetos arqueológicos, etnográficos e artesanías reunidas por Luis Raúl
Rodriguez Lamus ao longo de sua vida.
Colecionismo caseiro
O colecionismo caseiro de peças de arte pré-hispânica é uma
variante particular da enfermidade com tempo de incubação e manifestação
longos, mas que se pode contrair com escavações de fim de semana ou feriados.
Em uma segunda etapa, o paciente passará de buscador inveterado a comprador
compulsivo, e cedo então a enfermidade começará a atacar a vista do paciente. Mais
cedo ou mais tarde terminará comprando por ouvir, sem olhar, ou olhando sem ver
aquilo que não quer ver. Tão pouco faltará quem se aproveite do colecionista e
substitua por réplicas peças originais de sua coleção ou simplesmente as roube
ou quebre sem querer. Porém, há que se reconhecer-se que a alta qualidade dos
segundos originais à venda nas ruas de Rosales ou Usaquén, aqueles que os
colecionadores perspicazes não compraram, não é casual. A produção de réplicas
de cerâmica pré-colombiana tem mais de 150 anos de tradição, sendo quase tão
antiga quando o colecionismo.
Diferentemente da produção artística da família Alzate, que
levou à invenção de novas culturas pré-colombianas ao longo de gerações, a
maioria dos replicadores fabricam cerâmicas bastante parecidas com as
originais. Em muitos casos lançam mão de fragmentos originais para criar peças
hibridas. Uma olhada superficial, talvez acompanhada de uma boa história, má
luz ou óculos velhos podem ser suficientes para viabilizar a transação que
aliviará alguns dos sintomas do enfermo por um momento, ou dois.
Ainda que não seja uma doença fatal, o colecionismo de peças
pré-hispânicas tende a acabar só com a morte do paciente. São raros os casos de
morte violenta, embora o degolamento de comerciantes de arte pré-hispânica com cuchillos
cerimoniais não seja desconhecido. Uma coleção sem colecionista tende a
converter-se em um problema para os parentes. Se não há contágio na família,
aos herdeiros se abrem dois cenários possíveis: dissolver a coleção e recuperar
uma fração do dinheiro investido ou mantê-la integra e câmbia-la por prestigio.
Conscientes das possiblidades e desafios decorrentes de manter uma coleção, os
familiares do enfermo buscarão entregar a coleção a um prestigioso museu ou
instituição para devolvê-la ao âmbito do público.
O que fazemos com isto?
O número de coleções privadas de bens arqueológicos na América Latina deve ser astronômico e poderia ver-se isso como indicador de uma pandemia de séculos. Mudanças legislativas a nível global e regional sugerem o inicio de um longo ocaso. Pouco a pouco, mas cada vez mais, as coleções de arte pré colonial acumuladas por indivíduos privados passam para os museus e universidades, que devem responder à pergunta: o que fazer com esse apanhado desordenado de objetos guaqueados e comprados, alienados e inventados, de obras mestras da replicação mescladas com peças de cerâmica e líticas originais e fragmentadas? A única resposta possível é dar o exemplo daquilo que se pode fazer para sanar as feridas deixadas pela enfermidade, ressarcir o dano acumulado retornando todo o possível ao âmbito do comum. Em outras palavras, catar as páginas perdidas e devolvê-las ao livro da história.
[esta tradução será publicada materialmente no próximo número da revista Transgressoar, a sair provavelmente em junho. Se você conhece algum texto em outra língua à traduzir ou mesmo em língua portuguesa que dialogue com esta tradução de alguma forma, manda pra gente, vamos publicar na TRANSGRESSOAR]
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@editoramaracaxa
domingo, 18 de abril de 2021
TRADUÇÕES DA POESIA ANARQUISTA DE FERNANDA GRIGOLIN
SOU AQUELA MULHER DO CANTO ESQUERDO DO QUADRO, de FERNANDA GRIGOLIN, é um livro publicado em 2019 pela casa editorial independente anarcofeminista TENDA DE LIVROS (https://tendadelivros.org/), de São Paulo. Essa obra faz parte da série AQUELA MULHER. É uma ficção baseada em muita pesquisa histórica e se estrutura como uma conversa-entrevista em que uma trabalhadora que viveu a efervescência anarquista da primeira metade do século vinte conta sua história de vida. O fluxo principal, a conversa, é entrecortado por trechos e fac similes de jornais da época. No livro, escrito em português, existem duas poesias em língua espanhola, uma no começo* e outra no fim (Eu, Tita Mundo)**, aqui traduzi-as para o brasileiro, pela transcriação, pelo comunicar, pela relação somatória entre as línguas y gentes, para que a História, as palavras de Tita Mundo e a voz Daquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro ressoem ainda mais por aí, pelas mentes, chãos e céus do mundo…
[Tereza Uirapuru]
*Peço a ti, leitora,
que ao ler-me escutes
uma mulher tecendo em uma máquina.
Sim, sou eu a tecedora.
Posso ser também
uma mulher tipografa que busca,
letra por letra,
colocar um periódico pra circular.
Posso ser também
uma mulher que maneja o telégrafo
e avisa em ponto e traço a outras mulheres:
ouçam, vamos começar nossa greve.
Estas são as imagens,
eu lhe peço,
escute-as, são mulheres.
O melhor seria falar de mim no gerúndio,
construindo-me,
armando-me linha a linha
desde uma temporalidade feminista.
Mas escrever no gerúndio o tempo todo
pode converter o que escreves
em algo aborrecedor,
quasi um erro linguístico.
Faz, leitora,
o gerúndio em ti,
lê estas palavras
com teu movimento interno presente.
Só a inquietude
constrói saberes desviantes.
Sim, sou eu a narradora.
**Nasci no 04 de maio de 1878 em Barcelona, Espanha
Quando tinha dois anos minha família e
eu fomos viver no Brasil.
Foi a primeira de muitas viagens em minha vida…
Minha mãe trabalhou a vida toda como costureira e
meu pai como sapateiro. Os dois anarquistas.
Nós, os filhos, aprendemos com eles na prática.
A biblioteca era o lugar comum da casa e
sempre líamos livros em espanhol, português e italiano.
Comecei a trabalhar com onze anos e
com vinte participei do meu primeiro boicote, me recordo bem.
Era 1908, São Paulo, armamos um plano entre nós mulheres,
que trabalhávamos costurando sacos de juta,
afrouxaríamos os pontos de maneira imperceptível,
os Mestres não o perceberiam, e
levariam os sacos aos armazéns para recheá-los de café.
Era um risco, passar pelo controle rigoroso que
eles faziam, mas com um bom plano seria possível…
Passamos alguns meses fazendo testes e
esse dia tudo saiu perfeito:
o café foi colocado nos sacos, milhares de sacos.
A maioria deles se descosturou nos trens rumo
a Santos, rumo a exportação…
A bolsa do café baixou pontos e
percebemos que unidas somos fortes.
Mas uma das companheiras nos delatou,
Lucía e eu fomos enviadas ao cárcere como conspiradoras…
Passaram cinco anos até eu poder sair.
Meus pais já haviam sido deportados à Espanha e
sobre meu irmão não consegui nenhuma informação.
Eu por haver cometido apenas
um “crime” contra a segurança nacional,
me meteram na prisão.
Quando sai,
minha casa já não existia,
estava completamente sozinha.
Lucía havia sido torturada e estava morta.
Eu tinha saudade dela.
Com nome falso consegui trabalho em uma Tecelagem
(Cotonifício Crespi).
Também conheci
muitas mulheres que me ensinaram coisas ali.
Minha alma é livre e
enquanto a liberdade não for alcançada
como um fato social, serei grevista.
Aguentei pouco tempo sem planejar ações porque
a fábrica era um lugar insuportável…
Ali conheci a Sophie, ela andava com as irmãs Soares e
outras do Centro Feminino de Jovens Idealistas.
Começamos a viver juntas e me uni a essas mulheres
as quais até hoje sinto muita saudade.
Veio a Greve de 1917: enorme, imensa.
Meu coração dizia que as mudanças eram possíveis e
que íamos construir um futuro próspero.
Me encarceraram outra vez…
Descobriram que era Tita Mundo, a Perigosa Tita,
como me nomearam.
Por ser minha segunda vez na prisão me expulsaram pra Espanha.
Cheguei em Barcelona quase 38 anos depois de minha partida.
Não sabia muito daquele país,
sabia que era a terra de meus pais e
que lá eles começaram a dizer-se anarquistas,
nós líamos muitos livros feitos por espanhóis.
Ferrer Guardia havia sido fuzilado ali…
Mas meu cotidiano era no Brasil,
eu só conhecia as anarquistas que viviam lá.
Procurei irmãos e amigas da minha mãe e
me comentaram que meu pai e mãe haviam morrido
à mando do Pistoleirismo.
De volta à Espanha,
se organizaram em sindicatos,
armaram uma greve e
foram assassinados pelos matones do patrão…
De meu irmão nada sabiam,
mas depois de um tempo descobri que
passou anos sendo trasladado a vários cárceres,
como Bastilha do Cambuci, e que morreu em Clevelândia,
a prisão feita pra nós, os anarquistas,
bem isolada no norte do Brasil e
da qual só Domingos Passos e
alguns conseguiram escapar.
Em Barcelona, comecei a trabalhar como padeira
para ter dinheiro, poder sobreviver e me ir dali.
Via o sangue de meus pais por todos os lados…
Em 1920 subi em um navio de novo, agora até o México.
Cheguei ao Porto de Veracruz,
a Liberdade cobriu todo meu corpo outra vez.
Encontrei muitas mulheres preciosas em La Huaca,
muitas como eu:
solteiras, sem filhos e crentes do prazer sexual.
Fui viver nessa parte da cidade.
No pátio da vizinhança conversávamos,
liamos os artigos das mulheres sobre nossos direitos.
Muitas de nós eram prostitutas.
Falávamos todos os dias sobre a libertação sexual.
Os aluguéis subiam a cada dia.
As muchachas resolveram se unir e começaram a greve.
A união entre as mulheres contagiava de pátio à pátio.
Tamales, café preto, Terra e Liberdade era o que queríamos.
Em nossas portas pendurávamos:
Estoy en huelga y no pago la renta.
(Estou em greve e não pago o aluguel)
Olhava nos olhos de cada companheira e via muita verdade.
Nossas reivindicações eram:
Liberação Sexual, Fim da Propriedade Privada e
Fim do Estado.
Lá conheci Petra e nos enamoramos.
Passávamos dias e dias juntas,
falando de nossas histórias…
Chegou o 5 de julho de 1922,
chovia como nunca,
a água molhava até os ossos.
Fomos todas ao sindicato,
havia muitas pessoas,
mulheres e homens.
A greve estava por todas partes…
Intentamos sair em marcha mas
os federais não nos deixaram.
Houve confronto.
Muitas mortes e encarcerados.
Me meteram no cárcere uma vez mais,
foi a pior prisão da minha vida, fui violada, ofendida…
Me obrigaram a fazer sexo com dois homens,
até hoje tenho pesadelos, policiais me violando.
Antes, meus sonhos sempre haviam sido ternos e
com mulheres…
No ano de 1923, um ano depois,
criamos entre muitas a
Federação de Mulheres Libertárias em Veracruz.
Líamos e estudávamos a história
das mulheres anarquistas mexicanas.
Soube da vida de Margarita Ortega Valdés,
uma valente combatente magonista que enfrentou o deserto e
a repressão, morreu fuzilada em 1913.
Aquilo me impressionou, mesmo depois de tudo
o que eu já tinha vivido.
A história dela estava cheia de detalhes
e me parecia escutar sua voz pela noite dizendo:
FORÇA IRMÃ!
Ela entendia o deserto e
suas zonas de imenso calor como ninguém.
Comecei a ler mais sobre os magonistas e
suas intenções de resistência na fronteira.
A larga fronteira do México tem muita relação com
os Estados Unidos.
Nos tempos da Revolução Mexicana,
o periódico Regeneración tinha partes em inglês com textos
de Emma Goldman, por exemplo.
Soube que nesta época houve um comitê Pró
Revolução Mexicana em meu amado Brasil,
Emma Goldman ajudou que Neno Vascos e
Edgar Leuenroth soubessem mais da irmandade Magón.
No Brasil conheci Leuenroth,
era amigo de meus pais, nos falava de política e
economia brasileira,
ele acreditava muito no internacionalismo.
Em 1925, Petra e eu fomos juntas a Buenos Aires.
Tínhamos uma missão,
reforçar nossos laços de solidariedade,
enviar informação que não podia ir
em uma carta ou por telégrafo e
poder pensar juntas a luta latinoamericana.
Diziam que Argentina era um lindo país…
Lá também aconteceram greves,
Lá também as mulheres faziam periódicos.
La Voz de La Mujer foi o mais antigo.
Era uma emoção saber que éramos várias!
Em um encontro no México,
quando falaram sobre as greves na Argentina,
nomearam uma mulher:
Virginia Bolten.
Soube muitas coisas sobre a Argentina,
houve um grupo de mulheres chamado As Proletárias e
há um periódico em atividade Nuestra Tribuna.
a diretora é Juana Rouco Buella.
Ao chegar a Buenos Aires tive uma boa surpresa:
encontrei Luigi Magrassi,
filho de Matilde Magrassi,
ele estava vivendo na cidade.
Matilde e eu havíamos nos conhecido em uma atividade e
depois nos fizemos amigas.
Que mulher tão otimista,
acreditava muito na sociedade de resistência.
Na Argentina Matilde fazia parte do grupo
As Libertárias.
Luigi estava vivendo ali envolvido na
Liga de Educação Racionalista e
colaborava com o periódico La Protesta.
Buenos aires foi um lugar com muitas atividades anarquistas:
greve de padeiros e
discussões acerca das ideias de Malatesta.
Mas os sindicatos e
federações anarquistas estavam então vazios,
havia outras organizações que
aceitavam negociar com o governo.
A FORA estava com uma campanha laboral de 6 horas,
na tentativa de acabar com a desocupação.
De Buenos Aires tivemos que ir muito rápido,
a situação era insegura…
Petra decidiu ir pra Europa.
Eu decidi passar os últimos anos da minha vida no Brasil.
Tinha saudade das companheiras e da luta neste país…
Aluguei uma casa pequena em Santos, perto do mar.
Santos, em princípios do século,
foi considerada uma das cidades mais anarquistas do mundo
junto a Veracruz e Barcelona.
São os fluxos dos portos os que trazem sempre a novidade.
Ali fui viver.
[traduções originalmente publicadas na revista Transgressoar: transcriação, tradução e comunicação artística - número 1, fevereiro de 2021]
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