quarta-feira, 11 de agosto de 2021

[Tradução] Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes - Gabriel Garcia Márquez (Colômbia)

 

Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes,   de  Gabriel Garcia Marquez  (1968)
                                                 tradução: Aureliano Caminhamar
Ao terceiro dia de chuva  haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve de atravessar seu pátio inundado para atirá-los ao mar, pois o menino recém nascido havia passado a noite com febre e se pensava que essa era a causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram um cinza só, e as areias da praia, que em março fulguravam como a poeira do fogo, haviam se convertido em um caldo de lama e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia que, quando Pelayo regressava à casa depois de ter jogado os caranguejos, deu trabalho ver o que era que se movia e se queixava lá no fundo do pátio. Teve que chegar muito perto pra descobrir que era um homem velho, que estava tombado de boca pra baixo no lamaçal, e que, apesar de seus grandes esforços, não conseguia se levantar, porque o impediam suas enormes asas.

Assustado com aquele pesadelo, Pelayo saiu correndo em busca de Elisenda, sua companheira, que estava aplicando compressas no menino enfermo, e a levou até o fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído em calado estupor. Estava vestido como um trapeiro.  Restavam-lhe apenas uns fiapos descoloridos pelo crânio pelado e muitos poucos dentes na boca e sua lastimosa condição de bisavô ensopado o havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de galo gigante, sujas e meio despenadas estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda se recompuseram muito rápido do assombro e acabaram achando-o familiar. Então se atreveram a falar-lhe, e ele respondeu em um dialeto incompreensível mas com uma boa voz de navegante. Foi assim que passaram por cima do inconveniente das asas, e concluíram com muito bom juízo que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Mesmo assim, chamaram uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte para vê-lo, e a ela bastou uma olhada para afastá-los do engano.

- É um anjo - lhes disse - Com certeza veio pelo menino, mas o pobre está tão velho que a chuva o derrubou.

 No dia seguinte todo mundo sabia que na casa do Pelayo estava cativo um anjo de carne e osso. Contrariando o critério da sábia vizinha, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não haviam tido peito pra matá-lo à pauladas. Pelayo esteve vigiando-o a tarde toda da cozinha, armado com seu cacete de alguacil [oficial de justiça de baixa patente]  e antes de ir se deitar o arrastou do lamaçal e trancou-o com as galinhas no galinheiro de arame. À meia-noite, quando a chuva terminou, Pelayo e Elisenda seguiam matando caranguejos. Pouco depois o menino despertou sem febre e querendo comer. Então se sentiram magnânimos e decidiram botar o anjo em uma jangada com água doce e provisões para três dias e abandoná-lo à sua sorte em alto mar. Mas quando saíram pro pátio com as primeiras luzes da manhã, encontraram toda a vizinhança em frente ao galinheiro, brincando com o anjo sem a menor devoção e jogando-lhe coisas de comer pelos vazios do arame, como se não fosse uma criatura sobrenatural e sim um 
animal de circo.

O padre Gonzaga chegou antes das sete sobressaltado com a desproporção da notícia. A esta hora já haviam acudido curiosos menos frívolos que os do amanhecer, e haviam feito toda classe de conjecturas sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado prefeito do mundo. Outros, de espirito mais áspero, supunham que ascenderia à general de cinco estrelas para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que havia sido conservado como semental [reprodutor, garanhão] para implantar na terra uma estirpe de homens alados e sábios que assumiriam o controle do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser pároco, havia sido lenhador maciço. Aproximando-se do alambrado do galinheiro repassou em um instante seu catecismo, e ainda pediu que lhe abrissem a porta para examinar de perto aquele varão de se lastimar que mais parecia uma enorme galinha decrépita em meio às galinhas absortas. Estava deitado em um canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de fruta e as sobras de café da manhã que lhe haviam arremessado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, apenas ergueu seus olhos de antiquário e murmurou algo em seu dialeto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu bom dia em latim. 

O pároco começou a suspeitar que ele era um impostor ao comprovar que não entendia a língua de Deus e não sabia saudar os seus ministros. Logo observou que visto de perto resultava demasiado humano: tinha um insuportável odor de intempérie, a trás das asas semeadas de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada de sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro, e com um breve sermão preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Lhes recordou que o demônio tinha o mal costume de recorrer a artifícios de carnaval para confundir aos incautos. Argumentou que se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos podiam ser para reconhecer aos anjos. Mesmo assim, prometeu escrever uma carta à seu bispo, para que este escrevesse outra à seu primado e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de modo que o veredito final viria dos mais altos tribunais.

Sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo se divulgou com tanta rapidez que em poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram que levar a tropa com baionetas pra espantar o tumulto que já estava a ponto de tombar a casa. Elisenda, com a coluna torta de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de fechar com taipas o pátio e cobrar cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou zumbindo várias vezes por de cima da multidão, mas fizeram pouco caso dele porque suas asas não eram de anjo e sim de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais desgraçados do Caribe: uma pobre mulher que desde menina esteve contando os latidos de seu coração e já não lhe bastavam os números, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite e desfazia as coisas que havia feito desperto, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana abarrotaram de dinheiro os quartos, e ainda assim a fila de peregrinos que esperavam  sua vez de entrar chegava até o outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava de seu próprio acontecimento. Seu tempo se esvaia em buscar aconchego no ninho emprestado, aturdido pelo calor infernal das lâmpadas de azeite e das velas de sacrifício que aproximavam do alambrado. A princípio trataram de que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele os depreciava, assim como depreciou sem provar os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por anjo ou por velho que terminou comendo nada além de papinhas de berinjela. Sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando as galinhas o bicavam em busca dos parasitas estelares que proliferavam em suas asas, e os aleijados lhe arrancavam penas para tocar com elas seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras fazendo com que se levanta-se para poderem vê-lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram alterá-lo foi quando lhe queimaram as costelas com um ferro de marcar novilhos, porque estava a tantas horas imóvel que acreditaram estar morto. Despertou sobressaltado, disparatando em língua hermética  e com os olhos em lágrimas, e deu um par de golpes de asa que provocaram um redemoinho de esterco de galinheiro e poeira lunar, e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Ainda que muitos acreditassem que sua reação não havia sido de raiva e sim de dor, desde então deixaram de molestá-lo, porque a maioria entendeu que sua passividade não era a de um herói em férias e sim a de um cataclismo em repouso.

O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto não lhe chegava um juízo definitivo sobre a natureza do cativo.  Mas o correio de Roma havia perdido a noção da urgência. Seu tempo se esvaia em averiguar se o réu tinha umbigo, se seu dialeto tinha algo a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta de um alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas parcimoniosas teriam ido e vindo até o fim dos séculos, se um acontecimento providencial não houvesse posto fim às tribulações do pároco. Sucedeu que por aqueles dias, dentre muitas outras atrações das feiras errantes do Caribe, levaram ao povoado o triste espetáculo da mulher que havia se convertido em aranha por desobedecer a seus pais. A entrada para vê-la não só custava menos que a entrada para ver ao anjo, como também permitiam fazer à ela toda classe de perguntas sobre sua absurda condição, e examiná-la de cima a baixo, de modo que ninguém pôs em dúvida a verdade do horror.  Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Mas o mais desolador não era sua figura absurda e sim a sincera aflição com que contava os pormenores de sua desgraça: sendo quase uma menina havia escapado da casa de seus pais para ir a um baile, e quando regressava pelo bosque depois de haver dançado a noite toda sem permissão, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades, e por aquela rachadura saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. Seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caridosas quiseram jogar-lhe na boca. Semelhante espetáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha que derrotar sem propor-se a tanto o de um anjo depreciativo que apenas se dignava a mirar os mortais. 

Ademais, os escassos milagres atribuídos ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recobrou a visão mas lhe saíram três dentes novos,  e o do paralitico que não pôde andar mas esteve a ponto de ganhar na loteria, e o do leproso à quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação que bem mais pareciam entretenimentos zombeteiros, já haviam quebrantado a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha terminou de aniquilá-la. Foi assim que o padre Gonzaga se curou para sempre da insônia, e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos caminhavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada de que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de duas plantas, com varandas e jardins, e com muretas muito altas para que não se metessem os caranguejos do inverno, e com barras de ferro nas janelas pra que não se metessem os anjos.

Pelayo estabeleceu um criadouro de coelhos muito perto do povoado e renunciou para sempre a seu mal emprego de alguacil, e Elisenda comprou pra si umas sapatilhas acetinadas de saltos altos e muitos vestidos de seda tornasol, dos que usavam as senhoras mais cobiçadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi o único que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e queimaram as lágrimas de mirra em seu interior, não foi por honra ao anjo e sim pra acabar com a pestilência da esterqueira que já andava como um fantasma pra todo lado e estava voltando a ser velha a casa nova. A princípio, quando o menino aprendeu a andar, cuidaram que não se aproximasse do galinheiro. Mas logo foram esquecendo-se do temor e acostumando-se à peste, e antes mesmo de trocar os dentes o menino havia se metido a brincar dentro do galinheiro, cujo alambrado podre caía aos pedaços. O anjo não foi menos displicente com ele que com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansidão de cachorro sem ilusões. Ambos contraíram a catapora ao mesmo tempo. O médico que atendeu ao menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo, e lhe encontrou tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins, que não lhe parecia possível que estivesse vivo. O que mais lhe assombrou, no entanto, foi a lógica de suas asas. Resultavam tão naturais naquele organismo completamente humano, que não era possível entender porque não as tinham também os outros humanos.

Quando o menino foi pra escola, fazia muito tempo que o sol e a chuva haviam destruído o galinheiro. O anjo andava arrastando-se pra lá e pra cá como um moribundo sem dono. O sacavam a vassouradas de um dormitório e um momento depois o encontravam na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo, que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava fora de si que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Ele apenas podia comer, seus olhos de antiquário haviam virado tão turvos que andava tropeçando com suas articulações, e não lhe restava nada além das pontas peladas das últimas plumas. Pelayo jogou em cima dele uma manta e lhe fez a caridade de deixá-lo dormir no galpão, e só então perceberam que passava a noite com febre delirando em travalínguas de norueguês velho. Foi esta uma das poucas vezes que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer, e nem sequer a vizinha sábia havia podido lhes dizer o que se fazia com os anjos mortos.

No entanto, ele não só sobreviveu a seu pior inverno como também pareceu estar melhor com os primeiros sóis. Ficou imóvel muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém podia vê-lo, e em princípios de dezembro começaram a nascer-lhe nas asas umas plumas grandes e duras, plumas de pajarraco velho, que mais pareciam um novo acidente da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tomava muito cuidado que ninguém o notasse, e de que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas. 

Uma manhã, Elisenda estava cortando fatias de cebola para o almoço, quando um vento que parecia de alto mar se meteu na cozinha. Então se assomou pela ventana, e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas de voo. Eram tão torpes, que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve a ponto de destruir o telhado com aquele bater de asas indigno que resvalava na luz e não encontrava asilo no ar. Mas logrou ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de descanso, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando-se de qualquer jeito com um azaroso vibrar de asas de abutre senil. Seguiu vendo-o até quando acabou de cortar a cebola, e seguiu vendo-o até quando já não era possível que o pudesse ver, porque então já não era um estorvo em sua vida, e sim um ponto imaginário no horizonte                                                     do                                              mar.




imagem encontrada em https://wanderingbakya.com/un-senor-viejo-con-unas-alas-enormes-a-very-old-man-with-enormous-wings/

esta tradução foi pubLICADA NA TRANSGRESSOAR UM, de fevereiro de dois mil e vinteum


sábado, 7 de agosto de 2021

[Tradução] Altazor (ou a viagem de paraquedas) - Vicente Huidobro (Chile)

 ALTAZOR: UM POEMA DE VICENTE HUIDOBRO EM VII CANTOS, TRADUÇÃO DE GONZALO DÁVILA                    [publicação em série - nº 1]


Prefácio:

Nasci aos trinta e três anos, no dia da morte de Cristo; nasci no Equinócio, sob as hortênsias e  os aeroplanos de calor.

Tinha eu um olhar profundo de pardal, de túnel e de automóvel emotivo. Lançava suspiros de acrobata.

Meu pai era cego e suas mãos eram mais admiráveis que a noite.

Amo a noite, chapéu de todos os dias.

A noite, a noite do dia, do dia ao dia seguinte.

Minha mãe falava como a aurora e como os dirigíveis que estão prestes a cair. Tinha cabelos cor de bandeira e olhos cheios de navios distantes.

Numa tarde, peguei meu guarda-chuva e disse: “Entre uma estrela e duas andorinhas,” Eis aqui a morte que se aproxima como a terra à esfera que cai.

Minha mãe bordava lágrimas desertas nos primeiros arco-íris.

E agora o meu guarda chuvas cai de sonho em sonho pelos espaços da morte.

No primeiro dia encontrei um pássaro desconhecido que me disse: “Se eu fosse um dromedário eu não ia ter sede. Que horas são?” Bebeu as gotas de orvalho dos meus cabelos, me lançou três olhares e meio e se afastou dizendo: “adeus” com seu lencinho soberbo,

Por volta das duas horas daquele dia, encontrei um belo aeroplano, cheio de caracóis e escamas. Buscava um canto no céu onde proteger-se da chuva.

Ao longe, todos os barcos ancorados, na tinta da aurora. De repente, começaram a desprender-se, um por um, arrastando como um pavilhão pedaços da aurora incontestável.

Ao se porem em marcha os últimos, a aurora desapareceu atrás das ondas desmesuradamente inflamadas.       

Então ouvi falar o Criador. Sem nome, que é um simples buraco no vazio, belo como o mais belo dos umbigos.

“Fiz um grande barulho e esse barulho formou o oceano e as ondas do oceano.”

“Esse barulho irá sempre grudado nas ondas do mar e as ondas do mar sempre irão grudadas nele, como os selos dos cartões postais.”

“Depois teci um longo barbante de raios luminosos para costurar os dias um por um; os dias que têm um oriente restituído ou legítimo, porém indiscutível.”

“Depois tracei a geografia da Terra e as linhas da mão."

“Depois bebi um pouco de conhaque (por causa da hidrografia)."

“Depois criei a boca e os lábios da boca, para aprisionar os sorrisos furtivos e os dentes da boca, para vigiar os palavrões que nos chegam à boca."

“Criei a língua da boca que os homens desviaram de seu fim, fazendo-a aprender a falar... a ela, a bela nadadora, desviada para sempre de sua função aquática e puramente acariciadora.”

Meu guarda-chuva começou a cair vertiginosamente. Assim é a força da atração da morte e do sepulcro aberto.

Acredite, a sepultura tem mais poder que os olhos da amada. A sepultura aberta com todos seus imãs. E isso te digo a ti, a ti que quando sorri me faz pensar no começo do mundo.

Meu guarda-chuva ficou preso em uma estrela já extinta que seguia teimosamente a sua órbita, como se ignorasse a inutilidade de seus esforços.

E aproveitando essa pausa bem ganha, comecei a preencher com pensamentos profundos as casas do meu tabuleiro:                         

“Os poemas verdadeiros são incêndios. A poesia se propaga por todas as partes, iluminando suas consumações com estremecimentos de prazer ou de agonia.

“Se deve escrever em uma língua que não seja materna.

“Os quatro pontos cardinais são três: o norte e o sul.

“Um poema é uma coisa que será.

“Um poema é uma coisa que nunca é, mas que deveria ser.  

 “Um poema é uma coisa que nunca foi, que nunca poderá ser.      

“Foge do sublime externo, se você não quer ser esmagado pelo vento.  

“Se eu não fizesse pelo menos uma loucura por ano, eu ficaria louco.”

Pego meu guarda-chuva, e da borda da minha estrela em marcha, me lanço à atmosfera do último suspiro.

Rodopio interminavelmente sobre as rochas dos sonhos, rodopio entre as nuvens da morte.

Encontro a Virgem sentada em uma rosa, e ela me fala:

“Olha minhas mãos: são transparentes como as lâmpadas. “Você não vê esses fios de onde corre o sangue de minha luz toda intacta?

“Olha minha aureola. Ela tem algumas varizes, o que comprova a minha velhice.

“Sou a Virgem, a Virgem sem mancha de tinta humana, a única que não foi feita pela metade, e sou a capitã das outras onze mil que estavam na verdade por demais restauradas.

“Falo uma língua que preenche os corações segundo a lei das nuvens comunicantes.

“Digo sempre adeus, e permaneço.

“Ama-me, filho meu, pois adoro a tua poesia e te ensinarei proezas aéreas.

Tenho tanta necessidade de ternura, beija meus cabelos, lavei eles esta manhã nas nuvens da aurora e agora quero dormir sobre o colchão da neblina intermitente.

“Meus olhares são um arame no horizonte para o descanso das andorinhas.

“Ama-me.”

Me pus de joelhos no espaço circular e a Virgem se alçou e veio sentar-se em meu paraquedas.

Adormeci e recitei então meus mais belos poemas.

As chamas de minha poesia secaram os cabelos da Virgem, que me deu obrigado e se afastou, sentada sobre sua rosa amolecida.

            E eis-me aqui, só, como o pequeno órfão dos naufrágios anônimos.

            Ah, que belo... que belo...

             Vejo as montanhas, os rios, as selvas, o mar, os barcos, as flores e os caracóis.

Vejo a noite e o eixo em que se juntam.

            Ah, ah, sou Altazor, o grande poeta, sem cavalo que coma alpiste, nem esquente sua garganta com claro de lua, a não ser com meu pequeno paraquedas como um guarda-sol sobre os planetas.

De cada gota de suor da minha testa fiz que nascessem estrelas, as quais deixo a vocês a tarefa de batizar como a garrafas de vinho.

Eu vejo tudo, meu cérebro está forjado nas línguas de profeta, termômetro inchado até tocar os pés da amada.

Aquele que tudo já viu, que conhece todos os secretos sem ser Walt Whitman, pois jamais tive uma barba branca como as belas enfermeiras e os riachos gelados.

Aquele que ouve durante a noite as marteladas dos moedeiros falsos, que são apenas astrônomos ativos.

Aquele que bebe o copo quente da sabedoria depois do dilúvio obedecendo às pombas e que conhece a rota do cansaço, a espuma fervente que deixam os barcos.

Aquele que conhece os armazéns de lembranças e as belas estações esquecidas.

Ele, o pastor de aeroplanos, o condutor das noites extraviadas e dos poentes adestrados em direção aos polos únicos.  

Sua queixa é semelhante a uma rede bruxuleante de aerólitos sem testemunha.

O dia se levanta em seu coração e ele desce as pálpebras para fazer a noite do repouso agrícola.

Lava as mãos no olhar de Deus, e penteia seus cabelos como a luz e a colheita dessas magras espigas da chuva satisfeita.

Os gritos se afastam como um rebanho sobre as campinas quando as estrelas dormem depois de uma noite de trabalho seguido.

O belo caçador diante do bebedouro celeste feito para os pássaros sem coração.

Sê triste como as gazelas diante do infinito e os meteoros, tal qual os desertos sem miragens.

Até a chegada de uma boca inchada de beijos para a vindima do desterro.

Sê triste, pois ela te espera em um recanto deste ano que passa.

Está talvez no extremo da tua próxima canção e será bela como a cascata em liberdade e rica como a linha equatorial.

     Sê triste, mais triste que a rosa, a bela gaiola de nossos olhares e das abelhas sem experiência.

A vida é uma viagem de paraquedas e não o que você quer que seja.

Vamos caindo, caindo do nosso zênite ao nosso nadir e deixamos o ar manchado de sangue para que se envenenem aqueles que venham amanhã respirá-lo.

Adentro de ti mesmo, afora de ti mesmo, você cairá do zênite ao nadir porque esse é seu destino, seu miserável destino. E de quanto mais alto cair mais alto será o rebote, mais longa a sua duração na memória da pedra.

Pulamos do ventre da nossa mãe ou da borda de uma estrela e assim vamos caindo.                        

Ah meu paraquedas, a única rosa perfumada da atmosfera, a rosa da morte, despencada entre os astros da morte.

Ouviram? Esse é o barulho sinistro dos peitos fechados.  

Abre a porta da sua alma e sai para respirar do lado de fora. Você pode abrir com um suspiro a porta que um dia fechou o furacão.

Homem, eis aqui teu paraquedas maravilhoso como o vértigo* (O correspondente gramaticalmente correto seria “vertigem”, mas mantive a palavra “vértigo” do espanhol pela sonoridade).

Poeta, eis aqui teu paraquedas, maravilhoso como o imã do abismo.

Mago, eis aqui teu paraquedas que uma palavra sua pode transformar em parasubidas maravilhoso como o relâmpago que queria cegar o criador.

O que esperas?

Mas eis aqui o segredo do Tenebroso que se esqueceu de sorrir.

E o paraquedas espera amarrado na porta como o cavalo da fuga interminável. 


CONTINUA......





sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O QUE É TRANSGRESSOAR?

 a TRANSGRESSOAR [TRANSGRESSÃO + SOAR]

é uma revista de transcriação, tradução, arte e comunicação

surgida  a partir do transpassar de dois projetos idealizados

mas não materializados:

uma coletânea de contos traduzidos

&

uma revista de artes visuais

  • inspirades pelas revistas independentes de arte e literatura do passado e do presente, nós da Maracaxá víamos como necessário e possível a abertura de um novo caminho impresso, enquanto ainda iniciávamos as costuras e publicações de nossos primeiros livros, íamos pensando na propositura de uma  re-vista da arte contemporânea, um lugar pra expressões que geralmente não víamos receber o devido espaço na literatura e na história impressa, por TRANSGREDIREM o status quo, a norma imposta, a colonização dos corpos e mentes, por refletirem, a fundo, e proporem algo ancestral ou novo, uma nova luz para iluminar a História e as estórias, um novo jeito de escrever, uma nova ou ancestral maneira de ver, sentir e viver as coisas. sonhávamos em circular uma revista que tivesse como cerne o exercício da tradução e o reavivar da importância das revistas independentes enquanto divulgadoras de gente nova, gente que instintivamente está escrevendo, desenhando, pintando, gravando e recriando a realidade desordenada em processos artísticos alquímicos, gente que está COMUNICANDO a realidade pela arte, que está começando a propor algo nesse sentido, a se reconhecer enquanto artista, ou que ainda só não teve a chance de publicar. Uma revista assim, entalhada na carne do mundo, de repente, pela urgência histórica de sua significação, há de se fazer acontecer..., pensávamos na época. 

depois aconteceu que eu, Pedro, estava lendo, por acaso, numa mesma semana, o conto e o artigo de arte que eram a inspiração primordial para os 'projetos idealizados' ditos acima, parados que estavam em alguma gaveta da memória das gentes desta editora. Um senhor muito velho com umas asas enormes, de Gabriel Garcia Márquez e A Andromeda Negra, de Elizabeth McGrath. A solução para minha inquietude ao relembrar projetos desconexos, mas que traziam 'sensações estéticas' semelhantes, foi pensar em alguma publicação, algum conceito unificador que abarcasse essas duas traduções (uma dum texto de 1972 e a outra de 1992). Lancei a ideia pro pessoal e depois de muito pensar, estudar e conversar, relembramos daquela ideia antiga e estávamos decidides a articular e instigar o surgimento de uma revista impressa que abarcasse a multiplicidade dos meios de expressão artística, com uma alta diversidade de vozes, e que não fosse nem um pouco tradicional ou copiadora de qualquer fórmula já assimilada, que inventasse e reinventasse sempre seus métodos e sua cara, seu "trejeito" desde a tipografia na diagramação na escolha da fonte na técnica escolhida pra encadernar até o conteúdo nas relações entre as linguagens os temas, em suma, a proposta estética inteira da publicação que germinávamos deveria se propor a ser transgressora, inclusive em relação a si mesma. Como objeto e como conceito.

Daí para o nome foi um pulo, pois 't r a n s g r e s s o a r' já existia antes da revista, tendo sido escrita e pixada por mim, Pedra, em vários locais da cidade, como no Barracão de Teatro da Unicamp, ou no banheiro do terminal de ônibus do centro, e estávamos todes da editora na época, além de traduzindo muito, caminhando pelas vias da transcriação, tanto na arte (entrelaçando os formatos, recriando verves) quanto na existência (reeditando condutas, re-existindo verbos). Redigimos a partir daí uma chamada aberta, na qual explicitamos a postura de abrir espaço impresso para "vozes geralmente marginalizadas, arte decolonial, arte livre, traduções e comunicações artísticas de todas as áreas" em uma publicação artesanal. 

Para nossa surpresa, muitas pessoas enviaram suas artes e reflexões. Tanto que, no fim das contas, acabamos não publicando a tradução inédita para o português da Andromeda Negra na Transgressoar 1, pois faltou espaço. Pode-se dizer que não houve uma 'curadoria', no sentido tradicional do termoA quase totalidade das artes recebidas foi publicada. Buscamos construir uma "narrativa" no sentido de estabelecer uma continuidade apenas para ambientar quem lê e vê entre tantos universos de expressão, uma espécie de conversa estrutural, da revista com a pessoa, onde buscamos ressaltar a diversidade e não apagá-la. Não houve 'tema geral' ou limitações de qualquer natureza. A diversidade foi, num geral, uma constante. Pois não de outra forma o editorial desta edição, publicada em fevereiro deste ano, afirma: a transgressoar sempre será um espaço de expressão de novas epistemologias e desconstrução de condutas e ideias retrógradas, conservadoras, e também um espaço para o encontro e a troca, a subversão y a igualdade, a soma e o dialogo livre, a construção e a desconstrução artística, enfim, um espaço aberto para o criar, o existir, o traduzir, o transcriar, o reivindicar transformador 

(;;;)

esta revista é uma maneira de registrar uma parte dessa

informação-movimentoevolução-transformar que está

acontecendo perante nossos olhos e da qual somos geratriz

da criação, queira-se ou não queira-se 

A materialização da Transgressoar um trouxe tanta alegria e tanto aprendizado para nós e tantas outras gentes que pouco depois já começamos à editar a Transgressoar dois, com alguns textos que não couberam na primeira edição e outros recebidos depois. Ela deve sair na semana que vem. 

   Uma publicação bem diferente da anterior

   pois a transgressoar transgrediu-se

                                                                                         Agora, este texto, definitivamente, não responde a pergunta: O que é Transgressoar? Esta ainda é uma pergunta que não sei responder...

Logo logo, este mês ainda, será publicada a Transgressoar 2. Depois disso disponibilizaremos  a Transgressoar 1 para download gratuito, e no futuro, talvez (tudo indica que sim), uma audiodescrição dela, aberta pra toda gente. Por enquanto, dá pra ver mais sobre ela aqui:

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/transgressoar-transcriacao-traducao-e-comunicacao-artistica

https://www.instagram.com/editoramaracaxa/

capa da Transgressoar 2 mostra os destroços de um depósito                                  de pinturas que pegou fogo

     a queima de museus e acervos culturais tem sido coisa comum no       Brasil

                                é um projeto, parece



'Um senhor muito velho com umas asas enormes' foi publicado na Transgressoar 1. 

A tradução inédita para o português de 'A Andromeda Negra' será publicada na Transgressoar 2

Este relato faz parte de uma série de relatos que se propõem a falar sobre as atividades da Maracaxá 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

[Tradução] A história da Viagem de LSD de Michel Foucault

                                                                  A HISTÓRIA DA VIAGEM DE LSD DE FOUCAULT

                                                                                           por Mitchell Dean e Daniel Zamora

                                                                                                     [tradução de Tereza Uirapuru]


Na primavera de 1975, Michel Foucault começava a reivindicar seu posto como grande intelectual francês do século vinte. Ele estava prestes a publicar o primeiro volume do trabalho que agarraria esse rótulo para si, “História da Sexualidade”. De saco cheio da conformista e enrustida cultura francesa da época, ele procuraria novamente refúgio em outros lugares, continuando um padrão de sua vida adulta que o havia levado para a Suécia, Polônia e depois Tunísia, onde viveu maio de 68. Ele ficou tão tomado pela atmosfera libertária de São Francisco que ponderou emigrar e virar californiano.  Parece então que Foucault se apaixonou pela Califórnia. Foi lá que o austero pensador anti-humanista dos anos 60, que havia proclamado a “morte do homem” em aberta hostilidade à filosofia de liberdade de Jean Paul Sartre, experimentaria, durante a década final da sua vida, novas formas de relatar aos outros e se reinventar, nos clubes de São Francisco. 

É dito que foi lá também que ele se tornou o “último homem” a tomar LSD (ácido lisérgico). Foucault descreveu o evento como uma “experiência grandiosa, uma das mais importantes da minha vida.” Ainda que o filósofo francês só muito tarde na vida tenha feito experimentos com alucinógenos, enquanto muitos outros depois “dropariam ácido” (assim eram chamadas as “viagens” pessoais desse tipo), seu apogeu cultural aconteceu no fim dos anos 60, e, nesse sentido, Foucault foi o “último homem” intelectual conhecido da época a tomar LSD na primeira onda coletiva do seu uso como uma substância de expansão da consciência. Ele havia sido precedido por Timothy Leary, Aldous Huxley, Allen Ginsberg e muites outres. Dropar ácido era o que fazia a juventude que experenciava a contracultura no fim dos anos 60 na Califórnia. Entre 1964 e 1966, o escritor Ken Kesey e sua trupe “Merry Pranksters” viajaram pelos Estados Unidos em um ônibus psicodélico, parando regularmente pra organizar festas de LSD. Estes “testes com ácido” seriam o salto para o surgir da geração beat e do movimento hippie nos anos seguintes. Sem dúvida o LSD e outros psicodélicos continuaram sendo usados, com variações e às vezes prevalências, mas nunca mais o ácido lisérgico, e a experiência trazida por ele, definiu cultura, arte, moda e estética  num  geral  como o fez no fim dos anos 60.

As suas qualidades de alteração da percepção foram concebidas na época em parte como profunda autoanalise e psicoterapia e em parte como experiência religiosa intensa. Timothy Leary fundaria até mesmo uma igreja, a “League for Spiritual Discovery” (liga para a descoberta espiritual) que tinha o LSD como sacramento, e o próprio Foucault concorda que a experiência foi “mística”, oferecendo a ele “visões de uma nova vida” e “uma perspectiva renovada” de si mesmo.

              Alguns meses depois, em uma carta à Simeon Wade, o jovem acólito que o havia convidado a tomar a substância, Foucault escreveu que a experiência o havia levado a reescrever inteiramente o primeiro volume de “História da Sexualidade”. Ele deixou de lado centenas de páginas já prontas, jogou o segundo volume inteiro no fogo e então abandonou os rascunhos do trabalho de múltiplos volumes. Com exceção do primeiro volume, que se tornou um manifesto para o emergente movimento queer na Califórnia e em outros lugares, nenhum dos outros volumes foi publicado em sua forma inicial. 

               Foucault foi até a “Claremont Graduate School” no sul da Califórnia durante a primeira das várias visitas de pesquisa que fez à Berkeley. Dada a natureza relativamente obscura da instituição, sua presença só pode dever-se à insistência de Wade, o autor de uma fanzine independente chamada Chez Foucault. Foucault é retratado lá com seu suéter branco e óculos de sol branco de aros amplos que o faziam parecer uma mistura de Kojak com Elton John.

Acompanhado por seu amor e companheiro, o pianista Michael Stoneman, Wade levaria Foucault a uma jornada que culminou na viagem de ácido em “Zabriskie Point”, no “Death Valley” (Vale da Morte), os remanescentes desérticos de um lago que secou há 5 milhões de anos atrás. O celebrado cineasta italiano, M. Antonioni, havia começado a filmar ali seu clássico californiano, Zabriskie Point, em 1968, tendo como pano de fundo os protestos des estudantes, o movimento des Panteras Negras, cultura psicodélica e liberação sexual. Seu filme incluía uma orgia no local. Em maio de 1975, podemos supor que era menos um evento de vanguarda estética que um clichê hippie dropar ácido lá. Ao menos o trio encontrou uma trilha sonora mais sofisticada para seus devaneios que Antonioni, substituindo Pink Floyd e Grateful Dead por fitas de Richard Strauss, Stockhausen e Pierre Boulez. Foucault tomou ácido nos espasmos finais de um período em que o LSD era considerado “exercício espiritual”, e que logo foi substituído pelo empreendedorismo movido à cocaína das discos e boates do fim dos anos 70.

O efeito em Foucault foi profundo. Ele inclusive alteraria radicalmente a direção de suas pesquisas nos anos seguintes. 

Quando ele finalmente publicou o segundo e o terceiro volumes da História da Sexualidade quase oito anos depois, o projeto colocou como central as “técnicas do self” que ele havia descoberto na ética da grécia clássica e da roma antiga. Ao invés de estudar a sexualidade através dos paradoxos de repressão e confissão herdados do cristianismo, ele insere na reflexão as múltiplas e diferentes maneiras que os humanos podem ver a si mesmos, governar a si mesmas, e como buscam os humanos moderar, controlar ou liberar, dependendo do caso, o que é considerado como prazeres, desejos ou tentações da carne. O que chamam “sexualidade” não seria mais vista como uma verdade profunda a ser descoberta interiormente ou inconscientemente, como Freud acreditava. é simplesmente mais um caminho em que nos reinventamos como seres humanos em relação com o erotismo, o lar e a família, o dia a dia e a ética.

Dada a sua relatividade histórica, e suas relações com a cultura confessional do cristianismo medieval, a sexualidade era algo que os antigos podiam nos ajudar a escapar, ou, como Foucault com frequência pontuava, algo a partir do qual podemos pelo menos “pensar de outra forma”. Nós não devemos libertar nossa sexualidade mas libertar a nós mesmos de todo esse sistema confessional que fez surgir essa libertação baseada na sexualidade. 

Não seria injusto dizer que durante os anos 60 Foucault participou da obsessão de um certo tipo de filosofia francesa em tirar fora o “subject” [em inglês “sujeito” mas também “objeto” de pesquisa ou “assunto”], um termo estranho que é tanto técnico quanto obscuro. Rejeitar o sujeito (o “self”), anunciar sua morte ou a morte da autoria, se tornou coisa comum no discurso e na teoria literária de Foucault, Barthes, Derrida e companhia. Nos anos 70, o “sujeito” foi explicado não apenas como um tipo de ficção dos pronunciamentos das ciências sociais e comportamentais, mas como resultado da aplicação de tais pseudociências dentro do que estadunidenses como Erving Goffman chamavam de “instituições totais” do asilo; o hospital, a escola e, acima de todas, a prisão.

O escândalo do trabalho de Foucault sobre prisões (Vigiar e Punir, 1975), por exemplo, foi a sua substituição da ideia de que elas [prisões] podem deformar e brutalizar o sujeito humano, pela alegação de que em sua busca por maior humanismo elas fabricavam os próprios sujeitos que dominavam e subjugavam.

Depois de suas experiências na California e sua exposição ao “culto californiano do self”, entretanto, o “subject” de Foucault se tornou livre, um agente ativo capaz de fazer-se através de exercícios físicos e espirituais, e com o potencial para a autotransformação radical por meio das experiências extremas. “Fazer do ‘princípio do prazer’ um ‘princípio de realidade’ é um problema ético e político a ser resolvido na atualidade”, escreveu Foucault para Wade. Nesse sentido, engajar-se em aventuras eróticas, experimentos psicotrópicos e na “invenção” de novos estilos de vida tornou possível a transgressão do sujeito padronizado produzido pelas instituições do moderno “welfare state”. Pra colocar isto em termos de neoliberais estadunidenses, Foucault fazia a leitura na época: o “empreender do ‘self’” estava tendendo a colocar sua própria identidade em risco no ato da “self-criação”.

(esta tradução será publicada de maneira impressa e com outra diagramação na Transgressoar nº2 - tradução-transcriação-arte-comunicação, que sai ainda neste mês de julho)

domingo, 27 de junho de 2021

VANGUARDA?????

    O que é historicamente considerado "vanguarda" senão uma galera privilegiada que pôde estudar e focar apenas em arte e inevitavelmente chegou a novas conclusões, novas linguagens etc? Enquanto que a vanguarda na verdade é um movimento coletivo, uma coisa assim que se sente no ar e que se comunica e está comunicando com toda gente, é como uma condensação do espirito da época com as necessidades artísticas dessa mesma época, e lugar. O que quero dizer? Que o que é conhecido como vanguarda artística é apenas a comunicação em termos estruturados de uma descoberta ou uma inovação que dorme, latente ou difusamente desperta, no coração de toda a geração.

    Portanto não existe esse ou aquele gênio ou precursor-inventor primordial de tal mudança (como muito se acredita por aqui desde 1922) pois que a arte mesmo se coloca como renovação e reinventar, ou seja, algo que naturalmente vai mudar, se reformular, e não de acordo com um arroubo genial de um individuo mas sim pela assimilação de toda a arte anterior em uma nova forma de arte, em um fluxo coletivo, constante e cada vez mais amplo de conversas, influências, reflexões e práticas artísticas libertárias.
    Não existem "heróis" na arte. Apenas estudantes e continuadoras... Toda criação artística conta uma nova estória e se insere em uma História, que não é a dos grandes nomes clássicos essenciais etc etc e sim a história das mãos que criaram e criam arte como forma de expressão da memória da criatividade da inquietude e da rebeldia humana, ao longo dos séculos e geografias.
Seguimos, por uma "vanguarda" popular não hierárquica. Pela arte enquanto transformação. Para isso, precisamos ser, ao menos um pouco, menos escolásticos e mais sentimentais...

AURELIANO CAMINHAMAR

quarta-feira, 21 de abril de 2021

CURAR O COLECIONISMO

 


              pingente criado entre os anos 500 e 1500 por gentes nativas de Abya Yala

         roubado e agora guardado no Museu do Ouro de Bogotá. foi, junto a outras obras de

    arte ritual indígena cedida à Pinacoteca no ano de 2010 para a exposição "Ouros do eldorado"


Curar o colecionismo

de Alexander Herrera Wassilowsky

em Gaceta do Centro de Investigación y Creación de la Universidad de los Andes, número 3, 2017, Bogotá, Colômbia

(tradução deTereza Uirapuru)

    O colecionismo é uma enfermidade comum, antiga e contagiosa de que sofrem muitas instituições e indivíduos, também universidades e eu. Usualmente se manifesta na juventude com um número reduzido de conchas ou rochas recolhidas junto a algum rio ou praia, mas com frequência se estabelece, se transforma e cresce durante toda a vida, podendo inclusive chegar a ser hereditária. À diferença do colecionismo de pedras, chaveiros, moedas ou livros, a acumulação exclusiva e excludente de peças de arte pré-hispânica se insere em uma larga tradição de destruição e alienação das bases materiais da história indígena. Se a história nos ajuda a aprender do passado poderia falar-se de uma enfermidade autoimune de origem colonial. Seu sintoma mais diagnóstico é a guaquería: o saque de sítios arqueológicos para buscar tumbas e oferendas indígenas que contenham peças de valor. Desconhecemos a maneira de extirpar esta enfermidade, mas sabemos que é possível contê-la e necessário estuda-la, e sabemos também que os museus e as coleções museográficas universitárias podem exercer um papel chave no processo de cura(ção).

Etiologia do colecionismo

    Os conquistadores não demoraram muito pra perceber que os objetos mais apreciados pelos nativos de América eram feitos para, e depositados com, os difuntos, pois estes com frequência incluíam objetos de metal. Mesmo se tratando geralmente de ligas com cobre como base, as notícias de metais preciosos em grandes quantidades em terras “americanas”, atiçadas pelo Inca Atahualpa com o inútil pagamento de seu próprio resgate, despertaram a cobiça de um continente e deram alento a fábulas que animaram jovens europeus a deixar o continente todo e cruzar o oceano em busca de tesouros. Este afã de tesouro é o mesmo vetor de contágio que encoraja camponeses e ministros, professoras rurais, diplomatas e monges, a buscar e comprar peças arqueológicas em toda a América Latina.

    Em que pese as duvidas iniciais entre setores do clero em torno da legalidade da profanação das tumbas dos “indios” por sua condição de pagãos ou “gentis”, a prática prontamente se instaurou. No século XVII os “manuais” para a “extirpação de idolatrias” recomendavam queimar o conteúdo, com exceção dos ossos, em fogueiras públicas, as quais as vezes eram tão grandes que lugares como Infernillo e Cerro Purgatorio mudaram de nome para sempre. A intensidade da destruição associada à cristianização forçada durante as campanhas de perseguição religiosa varia de região pra região, mas as marcas na paisagem ainda são reconhecíveis. Peninsulares, mestiços, indios e escravos participaram da guaqueria por distintos motivos ao longo de três séculos, tempo durante o qual a guaqueria passou a converter-se em uma forma de minério, prontamente regulado para assegurar o dizimo da coroa.

    Paradoxalmente, é nesse contexto que surgem as primeiras coleções de objetos de arte pré-hispânica, apenas mencionadas em testamentos pobremente estudados. Dada a importância histórica da passagem de uma valorização claramente mercantil e centrada no metálico dos objetos “pagãos” -o impacto do deslumbramento original monumentalizado nos “museus do ouro” de Bolívia, Peru, Equador e Colômbia- a um reconhecimento de seu valor estético, mnemônico e histórico, esta falta de estudos é surpreendente.

    Um segundo giro nas trajetórias de valoração do que hoje chamamos patrimônio, uma transformação desta enfermidade colonial, surge com a chegada do projeto ilustrado no século XVIII. Com as gestas de independência e a formação das republicas sul-americanas, a enfermidade colonial se transforma, pois se consolida o reconhecimento de que os objetos do passado não só podem ter um valor estético, mas também um valor histórico e testemunhal que independe da estética. E é nesta variante da enfermidade -a busca do conhecimento mediada pela acumulação, mais ou menos sistemática e ordenada, de objetos de atraente exotismo- onde se situam os museus nacionais, assim como uma grande quantidade de coleções particulares como aquela de 1070 objetos arqueológicos, etnográficos e artesanías reunidas por Luis Raúl Rodriguez Lamus ao longo de sua vida.

Colecionismo caseiro

    O colecionismo caseiro de peças de arte pré-hispânica é uma variante particular da enfermidade com tempo de incubação e manifestação longos, mas que se pode contrair com escavações de fim de semana ou feriados. Em uma segunda etapa, o paciente passará de buscador inveterado a comprador compulsivo, e cedo então a enfermidade começará a atacar a vista do paciente. Mais cedo ou mais tarde terminará comprando por ouvir, sem olhar, ou olhando sem ver aquilo que não quer ver. Tão pouco faltará quem se aproveite do colecionista e substitua por réplicas peças originais de sua coleção ou simplesmente as roube ou quebre sem querer. Porém, há que se reconhecer-se que a alta qualidade dos segundos originais à venda nas ruas de Rosales ou Usaquén, aqueles que os colecionadores perspicazes não compraram, não é casual. A produção de réplicas de cerâmica pré-colombiana tem mais de 150 anos de tradição, sendo quase tão antiga quando o colecionismo.

    Diferentemente da produção artística da família Alzate, que levou à invenção de novas culturas pré-colombianas ao longo de gerações, a maioria dos replicadores fabricam cerâmicas bastante parecidas com as originais. Em muitos casos lançam mão de fragmentos originais para criar peças hibridas. Uma olhada superficial, talvez acompanhada de uma boa história, má luz ou óculos velhos podem ser suficientes para viabilizar a transação que aliviará alguns dos sintomas do enfermo por um momento, ou dois.

    Ainda que não seja uma doença fatal, o colecionismo de peças pré-hispânicas tende a acabar só com a morte do paciente. São raros os casos de morte violenta, embora o degolamento de comerciantes de arte pré-hispânica com cuchillos cerimoniais não seja desconhecido. Uma coleção sem colecionista tende a converter-se em um problema para os parentes. Se não há contágio na família, aos herdeiros se abrem dois cenários possíveis: dissolver a coleção e recuperar uma fração do dinheiro investido ou mantê-la integra e câmbia-la por prestigio. Conscientes das possiblidades e desafios decorrentes de manter uma coleção, os familiares do enfermo buscarão entregar a coleção a um prestigioso museu ou instituição para devolvê-la ao âmbito do público.

O que fazemos com isto?

    O número de coleções privadas de bens arqueológicos na América Latina deve ser astronômico e poderia ver-se isso como indicador de uma pandemia de séculos. Mudanças legislativas a nível global e regional sugerem o inicio de um longo ocaso. Pouco a pouco, mas cada vez mais, as coleções de arte pré colonial acumuladas por indivíduos privados passam para os museus e universidades, que devem responder à pergunta: o que fazer com esse apanhado desordenado de objetos guaqueados e comprados, alienados e inventados, de obras mestras da replicação mescladas com peças de cerâmica e líticas originais e fragmentadas? A única resposta possível é dar o exemplo daquilo que se pode fazer para sanar as feridas deixadas pela enfermidade, ressarcir o dano acumulado retornando todo o possível ao âmbito do comum. Em outras palavras, catar as páginas perdidas e devolvê-las ao livro da história.


[esta tradução será publicada materialmente no próximo número da revista Transgressoar, a sair provavelmente em junho. Se você conhece algum texto em outra língua à traduzir ou mesmo em língua portuguesa que dialogue com esta tradução de alguma forma, manda pra gente, vamos publicar na TRANSGRESSOAR]


editoramaracaxa@gmail.com

@editoramaracaxa


domingo, 18 de abril de 2021

TRADUÇÕES DA POESIA ANARQUISTA DE FERNANDA GRIGOLIN

SOU AQUELA MULHER DO CANTO ESQUERDO DO QUADRO, de FERNANDA GRIGOLIN, é um livro publicado em 2019 pela casa editorial independente anarcofeminista TENDA DE LIVROS (https://tendadelivros.org/), de São Paulo. Essa obra faz parte da série AQUELA MULHER. É uma ficção baseada em muita pesquisa histórica e se estrutura como uma conversa-entrevista em que uma trabalhadora que viveu a efervescência anarquista da primeira metade do século vinte conta sua história de vida. O fluxo principal, a conversa, é entrecortado por trechos e fac similes de jornais da época. No livro, escrito em português, existem duas poesias em língua espanhola, uma no começo* e outra no fim (Eu, Tita Mundo)**, aqui traduzi-as para o brasileiro, pela transcriação, pelo comunicar, pela relação somatória entre as línguas y gentes, para que a História, as palavras de Tita Mundo e a voz Daquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro ressoem ainda mais por aí, pelas mentes, chãos e céus do mundo…  

[Tereza Uirapuru]         


*Peço a ti, leitora,

que ao ler-me escutes

uma mulher tecendo em uma máquina.


Sim, sou eu a tecedora.


Posso ser também

uma mulher tipografa que busca,

letra por letra,

colocar um periódico pra circular.


Posso ser também

uma mulher que maneja o telégrafo

e avisa em ponto e traço a outras mulheres:

ouçam, vamos começar nossa greve.


Estas são as imagens,

eu lhe peço,

escute-as, são mulheres.


 O melhor seria falar de mim no gerúndio,

construindo-me,

armando-me linha a linha

desde uma temporalidade feminista.


Mas escrever no gerúndio o tempo todo

pode converter o que escreves

em algo aborrecedor,

quasi um erro linguístico.


Faz, leitora,

o gerúndio em ti,

lê estas palavras 

com teu movimento interno presente.


Só a inquietude 

constrói saberes desviantes.


Sim, sou eu a narradora.


**Nasci no 04 de maio de 1878 em Barcelona, Espanha

Quando tinha dois anos minha família e

eu fomos viver no Brasil.

Foi a primeira de muitas viagens em minha vida…


Minha mãe trabalhou a vida toda como costureira e

meu pai como sapateiro. Os dois anarquistas.

Nós, os filhos, aprendemos com eles na prática.


A biblioteca era o lugar comum da casa e

sempre líamos livros em espanhol, português e italiano.

Comecei a trabalhar com onze anos e

com vinte participei do meu primeiro boicote, me recordo bem.


Era 1908, São Paulo, armamos um plano entre nós mulheres,

que trabalhávamos costurando sacos de juta,

afrouxaríamos os pontos de maneira imperceptível,

os Mestres não o perceberiam, e

levariam os sacos aos armazéns para recheá-los de café.

Era um risco, passar pelo controle rigoroso que

eles faziam, mas com um bom plano seria possível…


Passamos alguns meses fazendo testes e

esse dia tudo saiu perfeito:

o café foi colocado nos sacos, milhares de sacos.

A maioria deles se descosturou nos trens rumo

a Santos, rumo a exportação…


A bolsa do café baixou pontos e

percebemos que unidas somos fortes.

Mas uma das companheiras nos delatou,

Lucía e eu fomos enviadas ao cárcere como conspiradoras…


Passaram cinco anos até eu poder sair.

Meus pais já haviam sido deportados à Espanha e

sobre meu irmão não consegui nenhuma informação.

Eu por haver cometido apenas

um “crime” contra a segurança nacional,

me meteram na prisão.

Quando sai,

minha casa já não existia,

estava completamente sozinha.

Lucía havia sido torturada e estava morta.

Eu tinha saudade dela.


Com nome falso consegui trabalho em uma Tecelagem 

(Cotonifício Crespi).

Também conheci

muitas mulheres que me ensinaram coisas ali.

Minha alma é livre e

enquanto a liberdade não for alcançada

como um fato social, serei grevista.


Aguentei pouco tempo sem planejar ações porque

a fábrica era um lugar insuportável…


Ali conheci a Sophie, ela andava com as irmãs Soares e

outras do Centro Feminino de Jovens Idealistas.

Começamos a viver juntas e me uni a essas mulheres

as quais até hoje sinto muita saudade.


Veio a Greve de 1917: enorme, imensa.

Meu coração dizia que as mudanças eram possíveis e

que íamos construir um futuro próspero.

Me encarceraram outra vez…


Descobriram que era Tita Mundo, a Perigosa Tita,

como me nomearam.


Por ser minha segunda vez na prisão me expulsaram pra Espanha.

Cheguei em Barcelona quase 38 anos depois de minha partida.

Não sabia muito daquele país,

sabia que era a terra de meus pais e

que lá eles começaram a dizer-se anarquistas,

nós líamos muitos livros feitos por espanhóis.

Ferrer Guardia havia sido fuzilado ali…


Mas meu cotidiano era no Brasil,

eu só conhecia as anarquistas que viviam lá.

Procurei irmãos e amigas da minha mãe e

me comentaram que meu pai e mãe haviam morrido

à mando do Pistoleirismo.


De volta à Espanha,

se organizaram em sindicatos,

armaram uma greve e

foram assassinados pelos matones do patrão…


De meu irmão nada sabiam,

mas depois de um tempo descobri que

passou anos sendo trasladado a vários cárceres,

como Bastilha do Cambuci, e que morreu em Clevelândia,

a prisão feita pra nós, os anarquistas,

bem isolada no norte do Brasil e

da qual só Domingos Passos e

alguns conseguiram escapar.


Em Barcelona, comecei a trabalhar como padeira

para ter dinheiro, poder sobreviver e me ir dali.

Via o sangue de meus pais por todos os lados…


Em 1920 subi em um navio de novo, agora até o México.

Cheguei ao Porto de Veracruz,

a Liberdade cobriu todo meu corpo outra vez.

Encontrei muitas mulheres preciosas em La Huaca,

muitas como eu:

solteiras, sem filhos e crentes do prazer sexual.

Fui viver nessa parte da cidade.


No pátio da vizinhança conversávamos,

liamos os artigos das mulheres sobre nossos direitos.

Muitas de nós eram prostitutas.

Falávamos todos os dias sobre a libertação sexual.


Os aluguéis subiam a cada dia.

As muchachas resolveram se unir e começaram a greve.

A união entre as mulheres contagiava de pátio à pátio.

Tamales, café preto, Terra e Liberdade era o que queríamos.

Em nossas portas pendurávamos:

Estoy en huelga y no pago la renta. 

(Estou em greve e não pago o aluguel)


Olhava nos olhos de cada companheira e via muita verdade.

Nossas reivindicações eram:

Liberação Sexual, Fim da Propriedade Privada e

Fim do Estado.

Lá conheci Petra e nos enamoramos.

Passávamos dias e dias juntas,

falando de nossas histórias…


Chegou o 5 de julho de 1922,

chovia como nunca,

a água molhava até os ossos.

Fomos todas ao sindicato,

havia muitas pessoas,

mulheres e homens.

A greve estava por todas partes…


Intentamos sair em marcha mas

os federais não nos deixaram.

Houve confronto.

Muitas mortes e encarcerados.

Me meteram no cárcere uma vez mais,

foi a pior prisão da minha vida, fui violada, ofendida…


Me obrigaram a fazer sexo com dois homens,

até hoje tenho pesadelos, policiais me violando.

Antes, meus sonhos sempre haviam sido ternos e

com mulheres…


No ano de 1923, um ano depois, 

criamos entre muitas a

Federação de Mulheres Libertárias em Veracruz.

Líamos e estudávamos a história 

das mulheres anarquistas mexicanas.


Soube da vida de Margarita Ortega Valdés,

uma valente combatente magonista que enfrentou o deserto e

a repressão, morreu fuzilada em 1913.

Aquilo me impressionou, mesmo depois de tudo

o que eu já tinha vivido.

A história dela estava cheia de detalhes 

e me parecia escutar sua voz pela noite dizendo:

FORÇA IRMÃ!

Ela entendia o deserto e

suas zonas de imenso calor como ninguém.

Comecei a ler mais sobre os magonistas e

suas intenções de resistência na fronteira.

A larga fronteira do México tem muita relação com

os Estados Unidos.

Nos tempos da Revolução Mexicana,

o periódico Regeneración tinha partes em inglês com textos

de Emma Goldman, por exemplo.


Soube que nesta época houve um comitê Pró

Revolução Mexicana em meu amado Brasil,

Emma Goldman ajudou que Neno Vascos e

Edgar Leuenroth soubessem mais da irmandade Magón.

No Brasil conheci Leuenroth,

era amigo de meus pais, nos falava de política e

economia brasileira,

ele acreditava muito no internacionalismo.


Em 1925, Petra e eu fomos juntas a Buenos Aires.

Tínhamos uma missão,

reforçar nossos laços de solidariedade,

enviar informação que não podia ir

em uma carta ou por telégrafo e

poder pensar juntas a luta latinoamericana.

Diziam que Argentina era um lindo país…


Lá também aconteceram greves,

Lá também as mulheres faziam periódicos.

La Voz de La Mujer foi o mais antigo.

Era uma emoção saber que éramos várias!


Em um encontro no México,

quando falaram sobre as greves na Argentina,

nomearam uma mulher:

Virginia Bolten.

Soube muitas coisas sobre a Argentina,

houve um grupo de mulheres chamado As Proletárias e

há um periódico em atividade Nuestra Tribuna.

a diretora é Juana Rouco Buella.


Ao chegar a Buenos Aires tive uma boa surpresa:

encontrei Luigi Magrassi,

filho de Matilde Magrassi,

ele estava vivendo na cidade.

Matilde e eu havíamos nos conhecido em uma atividade e

depois nos fizemos amigas.


Que mulher tão otimista,

acreditava muito na sociedade de resistência.


Na Argentina Matilde fazia parte do grupo

As Libertárias.

Luigi estava vivendo ali envolvido na

Liga de Educação Racionalista e

colaborava com o periódico La Protesta.


Buenos aires foi um lugar com muitas atividades anarquistas:

greve de padeiros e

discussões acerca das ideias de Malatesta.

Mas os sindicatos e

federações anarquistas estavam então vazios,

havia outras organizações que

aceitavam negociar com o governo.

A FORA estava com uma campanha laboral de 6 horas,

na tentativa de acabar com a desocupação.

De Buenos Aires tivemos que ir muito rápido,

a situação era insegura…


Petra decidiu ir pra Europa.

Eu decidi passar os últimos anos da minha vida no Brasil.

Tinha saudade das companheiras e da luta neste país…

Aluguei uma casa pequena em Santos, perto do mar.

Santos, em princípios do século,

foi considerada uma das cidades mais anarquistas do mundo

junto a Veracruz e Barcelona.

São os fluxos dos portos os que trazem sempre a novidade.

Ali fui viver. 


[traduções originalmente publicadas na revista Transgressoar: transcriação, tradução e comunicação artística -  número 1, fevereiro de 2021]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/transgressoar-transcriacao-traducao-e-comunicacao-artistica

[Tradução] Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes - Gabriel Garcia Márquez (Colômbia)

  Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes,   de  Gabriel Garcia Marquez   ( 1968)                                                   trad...