domingo, 18 de abril de 2021

TRADUÇÕES DA POESIA ANARQUISTA DE FERNANDA GRIGOLIN

SOU AQUELA MULHER DO CANTO ESQUERDO DO QUADRO, de FERNANDA GRIGOLIN, é um livro publicado em 2019 pela casa editorial independente anarcofeminista TENDA DE LIVROS (https://tendadelivros.org/), de São Paulo. Essa obra faz parte da série AQUELA MULHER. É uma ficção baseada em muita pesquisa histórica e se estrutura como uma conversa-entrevista em que uma trabalhadora que viveu a efervescência anarquista da primeira metade do século vinte conta sua história de vida. O fluxo principal, a conversa, é entrecortado por trechos e fac similes de jornais da época. No livro, escrito em português, existem duas poesias em língua espanhola, uma no começo* e outra no fim (Eu, Tita Mundo)**, aqui traduzi-as para o brasileiro, pela transcriação, pelo comunicar, pela relação somatória entre as línguas y gentes, para que a História, as palavras de Tita Mundo e a voz Daquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro ressoem ainda mais por aí, pelas mentes, chãos e céus do mundo…  

[Tereza Uirapuru]         


*Peço a ti, leitora,

que ao ler-me escutes

uma mulher tecendo em uma máquina.


Sim, sou eu a tecedora.


Posso ser também

uma mulher tipografa que busca,

letra por letra,

colocar um periódico pra circular.


Posso ser também

uma mulher que maneja o telégrafo

e avisa em ponto e traço a outras mulheres:

ouçam, vamos começar nossa greve.


Estas são as imagens,

eu lhe peço,

escute-as, são mulheres.


 O melhor seria falar de mim no gerúndio,

construindo-me,

armando-me linha a linha

desde uma temporalidade feminista.


Mas escrever no gerúndio o tempo todo

pode converter o que escreves

em algo aborrecedor,

quasi um erro linguístico.


Faz, leitora,

o gerúndio em ti,

lê estas palavras 

com teu movimento interno presente.


Só a inquietude 

constrói saberes desviantes.


Sim, sou eu a narradora.


**Nasci no 04 de maio de 1878 em Barcelona, Espanha

Quando tinha dois anos minha família e

eu fomos viver no Brasil.

Foi a primeira de muitas viagens em minha vida…


Minha mãe trabalhou a vida toda como costureira e

meu pai como sapateiro. Os dois anarquistas.

Nós, os filhos, aprendemos com eles na prática.


A biblioteca era o lugar comum da casa e

sempre líamos livros em espanhol, português e italiano.

Comecei a trabalhar com onze anos e

com vinte participei do meu primeiro boicote, me recordo bem.


Era 1908, São Paulo, armamos um plano entre nós mulheres,

que trabalhávamos costurando sacos de juta,

afrouxaríamos os pontos de maneira imperceptível,

os Mestres não o perceberiam, e

levariam os sacos aos armazéns para recheá-los de café.

Era um risco, passar pelo controle rigoroso que

eles faziam, mas com um bom plano seria possível…


Passamos alguns meses fazendo testes e

esse dia tudo saiu perfeito:

o café foi colocado nos sacos, milhares de sacos.

A maioria deles se descosturou nos trens rumo

a Santos, rumo a exportação…


A bolsa do café baixou pontos e

percebemos que unidas somos fortes.

Mas uma das companheiras nos delatou,

Lucía e eu fomos enviadas ao cárcere como conspiradoras…


Passaram cinco anos até eu poder sair.

Meus pais já haviam sido deportados à Espanha e

sobre meu irmão não consegui nenhuma informação.

Eu por haver cometido apenas

um “crime” contra a segurança nacional,

me meteram na prisão.

Quando sai,

minha casa já não existia,

estava completamente sozinha.

Lucía havia sido torturada e estava morta.

Eu tinha saudade dela.


Com nome falso consegui trabalho em uma Tecelagem 

(Cotonifício Crespi).

Também conheci

muitas mulheres que me ensinaram coisas ali.

Minha alma é livre e

enquanto a liberdade não for alcançada

como um fato social, serei grevista.


Aguentei pouco tempo sem planejar ações porque

a fábrica era um lugar insuportável…


Ali conheci a Sophie, ela andava com as irmãs Soares e

outras do Centro Feminino de Jovens Idealistas.

Começamos a viver juntas e me uni a essas mulheres

as quais até hoje sinto muita saudade.


Veio a Greve de 1917: enorme, imensa.

Meu coração dizia que as mudanças eram possíveis e

que íamos construir um futuro próspero.

Me encarceraram outra vez…


Descobriram que era Tita Mundo, a Perigosa Tita,

como me nomearam.


Por ser minha segunda vez na prisão me expulsaram pra Espanha.

Cheguei em Barcelona quase 38 anos depois de minha partida.

Não sabia muito daquele país,

sabia que era a terra de meus pais e

que lá eles começaram a dizer-se anarquistas,

nós líamos muitos livros feitos por espanhóis.

Ferrer Guardia havia sido fuzilado ali…


Mas meu cotidiano era no Brasil,

eu só conhecia as anarquistas que viviam lá.

Procurei irmãos e amigas da minha mãe e

me comentaram que meu pai e mãe haviam morrido

à mando do Pistoleirismo.


De volta à Espanha,

se organizaram em sindicatos,

armaram uma greve e

foram assassinados pelos matones do patrão…


De meu irmão nada sabiam,

mas depois de um tempo descobri que

passou anos sendo trasladado a vários cárceres,

como Bastilha do Cambuci, e que morreu em Clevelândia,

a prisão feita pra nós, os anarquistas,

bem isolada no norte do Brasil e

da qual só Domingos Passos e

alguns conseguiram escapar.


Em Barcelona, comecei a trabalhar como padeira

para ter dinheiro, poder sobreviver e me ir dali.

Via o sangue de meus pais por todos os lados…


Em 1920 subi em um navio de novo, agora até o México.

Cheguei ao Porto de Veracruz,

a Liberdade cobriu todo meu corpo outra vez.

Encontrei muitas mulheres preciosas em La Huaca,

muitas como eu:

solteiras, sem filhos e crentes do prazer sexual.

Fui viver nessa parte da cidade.


No pátio da vizinhança conversávamos,

liamos os artigos das mulheres sobre nossos direitos.

Muitas de nós eram prostitutas.

Falávamos todos os dias sobre a libertação sexual.


Os aluguéis subiam a cada dia.

As muchachas resolveram se unir e começaram a greve.

A união entre as mulheres contagiava de pátio à pátio.

Tamales, café preto, Terra e Liberdade era o que queríamos.

Em nossas portas pendurávamos:

Estoy en huelga y no pago la renta. 

(Estou em greve e não pago o aluguel)


Olhava nos olhos de cada companheira e via muita verdade.

Nossas reivindicações eram:

Liberação Sexual, Fim da Propriedade Privada e

Fim do Estado.

Lá conheci Petra e nos enamoramos.

Passávamos dias e dias juntas,

falando de nossas histórias…


Chegou o 5 de julho de 1922,

chovia como nunca,

a água molhava até os ossos.

Fomos todas ao sindicato,

havia muitas pessoas,

mulheres e homens.

A greve estava por todas partes…


Intentamos sair em marcha mas

os federais não nos deixaram.

Houve confronto.

Muitas mortes e encarcerados.

Me meteram no cárcere uma vez mais,

foi a pior prisão da minha vida, fui violada, ofendida…


Me obrigaram a fazer sexo com dois homens,

até hoje tenho pesadelos, policiais me violando.

Antes, meus sonhos sempre haviam sido ternos e

com mulheres…


No ano de 1923, um ano depois, 

criamos entre muitas a

Federação de Mulheres Libertárias em Veracruz.

Líamos e estudávamos a história 

das mulheres anarquistas mexicanas.


Soube da vida de Margarita Ortega Valdés,

uma valente combatente magonista que enfrentou o deserto e

a repressão, morreu fuzilada em 1913.

Aquilo me impressionou, mesmo depois de tudo

o que eu já tinha vivido.

A história dela estava cheia de detalhes 

e me parecia escutar sua voz pela noite dizendo:

FORÇA IRMÃ!

Ela entendia o deserto e

suas zonas de imenso calor como ninguém.

Comecei a ler mais sobre os magonistas e

suas intenções de resistência na fronteira.

A larga fronteira do México tem muita relação com

os Estados Unidos.

Nos tempos da Revolução Mexicana,

o periódico Regeneración tinha partes em inglês com textos

de Emma Goldman, por exemplo.


Soube que nesta época houve um comitê Pró

Revolução Mexicana em meu amado Brasil,

Emma Goldman ajudou que Neno Vascos e

Edgar Leuenroth soubessem mais da irmandade Magón.

No Brasil conheci Leuenroth,

era amigo de meus pais, nos falava de política e

economia brasileira,

ele acreditava muito no internacionalismo.


Em 1925, Petra e eu fomos juntas a Buenos Aires.

Tínhamos uma missão,

reforçar nossos laços de solidariedade,

enviar informação que não podia ir

em uma carta ou por telégrafo e

poder pensar juntas a luta latinoamericana.

Diziam que Argentina era um lindo país…


Lá também aconteceram greves,

Lá também as mulheres faziam periódicos.

La Voz de La Mujer foi o mais antigo.

Era uma emoção saber que éramos várias!


Em um encontro no México,

quando falaram sobre as greves na Argentina,

nomearam uma mulher:

Virginia Bolten.

Soube muitas coisas sobre a Argentina,

houve um grupo de mulheres chamado As Proletárias e

há um periódico em atividade Nuestra Tribuna.

a diretora é Juana Rouco Buella.


Ao chegar a Buenos Aires tive uma boa surpresa:

encontrei Luigi Magrassi,

filho de Matilde Magrassi,

ele estava vivendo na cidade.

Matilde e eu havíamos nos conhecido em uma atividade e

depois nos fizemos amigas.


Que mulher tão otimista,

acreditava muito na sociedade de resistência.


Na Argentina Matilde fazia parte do grupo

As Libertárias.

Luigi estava vivendo ali envolvido na

Liga de Educação Racionalista e

colaborava com o periódico La Protesta.


Buenos aires foi um lugar com muitas atividades anarquistas:

greve de padeiros e

discussões acerca das ideias de Malatesta.

Mas os sindicatos e

federações anarquistas estavam então vazios,

havia outras organizações que

aceitavam negociar com o governo.

A FORA estava com uma campanha laboral de 6 horas,

na tentativa de acabar com a desocupação.

De Buenos Aires tivemos que ir muito rápido,

a situação era insegura…


Petra decidiu ir pra Europa.

Eu decidi passar os últimos anos da minha vida no Brasil.

Tinha saudade das companheiras e da luta neste país…

Aluguei uma casa pequena em Santos, perto do mar.

Santos, em princípios do século,

foi considerada uma das cidades mais anarquistas do mundo

junto a Veracruz e Barcelona.

São os fluxos dos portos os que trazem sempre a novidade.

Ali fui viver. 


[traduções originalmente publicadas na revista Transgressoar: transcriação, tradução e comunicação artística -  número 1, fevereiro de 2021]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/transgressoar-transcriacao-traducao-e-comunicacao-artistica

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