pingente criado entre os anos 500 e 1500 por gentes nativas de Abya Yala
roubado e agora guardado no Museu do Ouro de Bogotá. foi, junto a outras obras de
arte ritual indígena cedida à Pinacoteca no ano de 2010 para a exposição "Ouros do eldorado"
Curar o colecionismo
de Alexander Herrera Wassilowsky
em Gaceta do Centro de Investigación
y Creación de la Universidad de los Andes, número 3, 2017, Bogotá, Colômbia
(tradução deTereza Uirapuru)
O colecionismo
é uma enfermidade comum, antiga e contagiosa de que sofrem muitas instituições
e indivíduos, também universidades e eu. Usualmente se manifesta na juventude
com um número reduzido de conchas ou rochas recolhidas junto a algum rio ou
praia, mas com frequência se estabelece, se transforma e cresce durante toda a
vida, podendo inclusive chegar a ser hereditária. À diferença do colecionismo
de pedras, chaveiros, moedas ou livros, a acumulação exclusiva e excludente de
peças de arte pré-hispânica se insere em uma larga tradição de destruição e
alienação das bases materiais da história indígena. Se a história nos ajuda a
aprender do passado poderia falar-se de uma enfermidade autoimune de origem
colonial. Seu sintoma mais diagnóstico é a guaquería: o saque de sítios
arqueológicos para buscar tumbas e oferendas indígenas que contenham peças de
valor. Desconhecemos a maneira de extirpar esta enfermidade, mas sabemos que é
possível contê-la e necessário estuda-la, e sabemos também que os museus e as
coleções museográficas universitárias podem exercer um papel chave no processo
de cura(ção).
Etiologia do
colecionismo
Os
conquistadores não demoraram muito pra perceber que os objetos mais apreciados
pelos nativos de América eram feitos para, e depositados com, os difuntos, pois
estes com frequência incluíam objetos de metal. Mesmo se tratando geralmente de
ligas com cobre como base, as notícias de metais preciosos em grandes
quantidades em terras “americanas”, atiçadas pelo Inca Atahualpa com o inútil
pagamento de seu próprio resgate, despertaram a cobiça de um continente e deram
alento a fábulas que animaram jovens europeus a deixar o continente todo e
cruzar o oceano em busca de tesouros. Este afã de tesouro é o mesmo vetor de
contágio que encoraja camponeses e ministros, professoras rurais, diplomatas e
monges, a buscar e comprar peças arqueológicas em toda a América Latina.
Em que pese as
duvidas iniciais entre setores do clero em torno da legalidade da profanação
das tumbas dos “indios” por sua condição de pagãos ou “gentis”, a prática
prontamente se instaurou. No século XVII os “manuais” para a “extirpação de
idolatrias” recomendavam queimar o conteúdo, com exceção dos ossos, em
fogueiras públicas, as quais as vezes eram tão grandes que lugares como Infernillo
e Cerro Purgatorio mudaram de nome para sempre. A intensidade da
destruição associada à cristianização forçada durante as campanhas de
perseguição religiosa varia de região pra região, mas as marcas na paisagem
ainda são reconhecíveis. Peninsulares, mestiços, indios e escravos participaram
da guaqueria por distintos motivos ao longo de três séculos,
tempo durante o qual a guaqueria passou a converter-se em uma forma de
minério, prontamente regulado para assegurar o dizimo da coroa.
Paradoxalmente,
é nesse contexto que surgem as primeiras coleções de objetos de arte
pré-hispânica, apenas mencionadas em testamentos pobremente estudados. Dada a
importância histórica da passagem de uma valorização claramente mercantil e
centrada no metálico dos objetos “pagãos” -o impacto do deslumbramento original
monumentalizado nos “museus do ouro” de Bolívia, Peru, Equador e Colômbia- a um
reconhecimento de seu valor estético, mnemônico e histórico, esta falta de
estudos é surpreendente.
Um segundo
giro nas trajetórias de valoração do que hoje chamamos patrimônio, uma
transformação desta enfermidade colonial, surge com a chegada do projeto ilustrado
no século XVIII. Com as gestas de independência e a formação das republicas
sul-americanas, a enfermidade colonial se transforma, pois se consolida o
reconhecimento de que os objetos do passado não só podem ter um valor estético,
mas também um valor histórico e testemunhal que independe da estética. E é
nesta variante da enfermidade -a busca do conhecimento mediada pela acumulação,
mais ou menos sistemática e ordenada, de objetos de atraente exotismo- onde se
situam os museus nacionais, assim como uma grande quantidade de coleções
particulares como aquela de 1070
objetos arqueológicos, etnográficos e artesanías reunidas por Luis Raúl
Rodriguez Lamus ao longo de sua vida.
Colecionismo caseiro
O colecionismo caseiro de peças de arte pré-hispânica é uma
variante particular da enfermidade com tempo de incubação e manifestação
longos, mas que se pode contrair com escavações de fim de semana ou feriados.
Em uma segunda etapa, o paciente passará de buscador inveterado a comprador
compulsivo, e cedo então a enfermidade começará a atacar a vista do paciente. Mais
cedo ou mais tarde terminará comprando por ouvir, sem olhar, ou olhando sem ver
aquilo que não quer ver. Tão pouco faltará quem se aproveite do colecionista e
substitua por réplicas peças originais de sua coleção ou simplesmente as roube
ou quebre sem querer. Porém, há que se reconhecer-se que a alta qualidade dos
segundos originais à venda nas ruas de Rosales ou Usaquén, aqueles que os
colecionadores perspicazes não compraram, não é casual. A produção de réplicas
de cerâmica pré-colombiana tem mais de 150 anos de tradição, sendo quase tão
antiga quando o colecionismo.
Diferentemente da produção artística da família Alzate, que
levou à invenção de novas culturas pré-colombianas ao longo de gerações, a
maioria dos replicadores fabricam cerâmicas bastante parecidas com as
originais. Em muitos casos lançam mão de fragmentos originais para criar peças
hibridas. Uma olhada superficial, talvez acompanhada de uma boa história, má
luz ou óculos velhos podem ser suficientes para viabilizar a transação que
aliviará alguns dos sintomas do enfermo por um momento, ou dois.
Ainda que não seja uma doença fatal, o colecionismo de peças
pré-hispânicas tende a acabar só com a morte do paciente. São raros os casos de
morte violenta, embora o degolamento de comerciantes de arte pré-hispânica com cuchillos
cerimoniais não seja desconhecido. Uma coleção sem colecionista tende a
converter-se em um problema para os parentes. Se não há contágio na família,
aos herdeiros se abrem dois cenários possíveis: dissolver a coleção e recuperar
uma fração do dinheiro investido ou mantê-la integra e câmbia-la por prestigio.
Conscientes das possiblidades e desafios decorrentes de manter uma coleção, os
familiares do enfermo buscarão entregar a coleção a um prestigioso museu ou
instituição para devolvê-la ao âmbito do público.
O que fazemos com isto?
O número de coleções privadas de bens arqueológicos na América Latina deve ser astronômico e poderia ver-se isso como indicador de uma pandemia de séculos. Mudanças legislativas a nível global e regional sugerem o inicio de um longo ocaso. Pouco a pouco, mas cada vez mais, as coleções de arte pré colonial acumuladas por indivíduos privados passam para os museus e universidades, que devem responder à pergunta: o que fazer com esse apanhado desordenado de objetos guaqueados e comprados, alienados e inventados, de obras mestras da replicação mescladas com peças de cerâmica e líticas originais e fragmentadas? A única resposta possível é dar o exemplo daquilo que se pode fazer para sanar as feridas deixadas pela enfermidade, ressarcir o dano acumulado retornando todo o possível ao âmbito do comum. Em outras palavras, catar as páginas perdidas e devolvê-las ao livro da história.
[esta tradução será publicada materialmente no próximo número da revista Transgressoar, a sair provavelmente em junho. Se você conhece algum texto em outra língua à traduzir ou mesmo em língua portuguesa que dialogue com esta tradução de alguma forma, manda pra gente, vamos publicar na TRANSGRESSOAR]
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