quarta-feira, 21 de abril de 2021

CURAR O COLECIONISMO

 


              pingente criado entre os anos 500 e 1500 por gentes nativas de Abya Yala

         roubado e agora guardado no Museu do Ouro de Bogotá. foi, junto a outras obras de

    arte ritual indígena cedida à Pinacoteca no ano de 2010 para a exposição "Ouros do eldorado"


Curar o colecionismo

de Alexander Herrera Wassilowsky

em Gaceta do Centro de Investigación y Creación de la Universidad de los Andes, número 3, 2017, Bogotá, Colômbia

(tradução deTereza Uirapuru)

    O colecionismo é uma enfermidade comum, antiga e contagiosa de que sofrem muitas instituições e indivíduos, também universidades e eu. Usualmente se manifesta na juventude com um número reduzido de conchas ou rochas recolhidas junto a algum rio ou praia, mas com frequência se estabelece, se transforma e cresce durante toda a vida, podendo inclusive chegar a ser hereditária. À diferença do colecionismo de pedras, chaveiros, moedas ou livros, a acumulação exclusiva e excludente de peças de arte pré-hispânica se insere em uma larga tradição de destruição e alienação das bases materiais da história indígena. Se a história nos ajuda a aprender do passado poderia falar-se de uma enfermidade autoimune de origem colonial. Seu sintoma mais diagnóstico é a guaquería: o saque de sítios arqueológicos para buscar tumbas e oferendas indígenas que contenham peças de valor. Desconhecemos a maneira de extirpar esta enfermidade, mas sabemos que é possível contê-la e necessário estuda-la, e sabemos também que os museus e as coleções museográficas universitárias podem exercer um papel chave no processo de cura(ção).

Etiologia do colecionismo

    Os conquistadores não demoraram muito pra perceber que os objetos mais apreciados pelos nativos de América eram feitos para, e depositados com, os difuntos, pois estes com frequência incluíam objetos de metal. Mesmo se tratando geralmente de ligas com cobre como base, as notícias de metais preciosos em grandes quantidades em terras “americanas”, atiçadas pelo Inca Atahualpa com o inútil pagamento de seu próprio resgate, despertaram a cobiça de um continente e deram alento a fábulas que animaram jovens europeus a deixar o continente todo e cruzar o oceano em busca de tesouros. Este afã de tesouro é o mesmo vetor de contágio que encoraja camponeses e ministros, professoras rurais, diplomatas e monges, a buscar e comprar peças arqueológicas em toda a América Latina.

    Em que pese as duvidas iniciais entre setores do clero em torno da legalidade da profanação das tumbas dos “indios” por sua condição de pagãos ou “gentis”, a prática prontamente se instaurou. No século XVII os “manuais” para a “extirpação de idolatrias” recomendavam queimar o conteúdo, com exceção dos ossos, em fogueiras públicas, as quais as vezes eram tão grandes que lugares como Infernillo e Cerro Purgatorio mudaram de nome para sempre. A intensidade da destruição associada à cristianização forçada durante as campanhas de perseguição religiosa varia de região pra região, mas as marcas na paisagem ainda são reconhecíveis. Peninsulares, mestiços, indios e escravos participaram da guaqueria por distintos motivos ao longo de três séculos, tempo durante o qual a guaqueria passou a converter-se em uma forma de minério, prontamente regulado para assegurar o dizimo da coroa.

    Paradoxalmente, é nesse contexto que surgem as primeiras coleções de objetos de arte pré-hispânica, apenas mencionadas em testamentos pobremente estudados. Dada a importância histórica da passagem de uma valorização claramente mercantil e centrada no metálico dos objetos “pagãos” -o impacto do deslumbramento original monumentalizado nos “museus do ouro” de Bolívia, Peru, Equador e Colômbia- a um reconhecimento de seu valor estético, mnemônico e histórico, esta falta de estudos é surpreendente.

    Um segundo giro nas trajetórias de valoração do que hoje chamamos patrimônio, uma transformação desta enfermidade colonial, surge com a chegada do projeto ilustrado no século XVIII. Com as gestas de independência e a formação das republicas sul-americanas, a enfermidade colonial se transforma, pois se consolida o reconhecimento de que os objetos do passado não só podem ter um valor estético, mas também um valor histórico e testemunhal que independe da estética. E é nesta variante da enfermidade -a busca do conhecimento mediada pela acumulação, mais ou menos sistemática e ordenada, de objetos de atraente exotismo- onde se situam os museus nacionais, assim como uma grande quantidade de coleções particulares como aquela de 1070 objetos arqueológicos, etnográficos e artesanías reunidas por Luis Raúl Rodriguez Lamus ao longo de sua vida.

Colecionismo caseiro

    O colecionismo caseiro de peças de arte pré-hispânica é uma variante particular da enfermidade com tempo de incubação e manifestação longos, mas que se pode contrair com escavações de fim de semana ou feriados. Em uma segunda etapa, o paciente passará de buscador inveterado a comprador compulsivo, e cedo então a enfermidade começará a atacar a vista do paciente. Mais cedo ou mais tarde terminará comprando por ouvir, sem olhar, ou olhando sem ver aquilo que não quer ver. Tão pouco faltará quem se aproveite do colecionista e substitua por réplicas peças originais de sua coleção ou simplesmente as roube ou quebre sem querer. Porém, há que se reconhecer-se que a alta qualidade dos segundos originais à venda nas ruas de Rosales ou Usaquén, aqueles que os colecionadores perspicazes não compraram, não é casual. A produção de réplicas de cerâmica pré-colombiana tem mais de 150 anos de tradição, sendo quase tão antiga quando o colecionismo.

    Diferentemente da produção artística da família Alzate, que levou à invenção de novas culturas pré-colombianas ao longo de gerações, a maioria dos replicadores fabricam cerâmicas bastante parecidas com as originais. Em muitos casos lançam mão de fragmentos originais para criar peças hibridas. Uma olhada superficial, talvez acompanhada de uma boa história, má luz ou óculos velhos podem ser suficientes para viabilizar a transação que aliviará alguns dos sintomas do enfermo por um momento, ou dois.

    Ainda que não seja uma doença fatal, o colecionismo de peças pré-hispânicas tende a acabar só com a morte do paciente. São raros os casos de morte violenta, embora o degolamento de comerciantes de arte pré-hispânica com cuchillos cerimoniais não seja desconhecido. Uma coleção sem colecionista tende a converter-se em um problema para os parentes. Se não há contágio na família, aos herdeiros se abrem dois cenários possíveis: dissolver a coleção e recuperar uma fração do dinheiro investido ou mantê-la integra e câmbia-la por prestigio. Conscientes das possiblidades e desafios decorrentes de manter uma coleção, os familiares do enfermo buscarão entregar a coleção a um prestigioso museu ou instituição para devolvê-la ao âmbito do público.

O que fazemos com isto?

    O número de coleções privadas de bens arqueológicos na América Latina deve ser astronômico e poderia ver-se isso como indicador de uma pandemia de séculos. Mudanças legislativas a nível global e regional sugerem o inicio de um longo ocaso. Pouco a pouco, mas cada vez mais, as coleções de arte pré colonial acumuladas por indivíduos privados passam para os museus e universidades, que devem responder à pergunta: o que fazer com esse apanhado desordenado de objetos guaqueados e comprados, alienados e inventados, de obras mestras da replicação mescladas com peças de cerâmica e líticas originais e fragmentadas? A única resposta possível é dar o exemplo daquilo que se pode fazer para sanar as feridas deixadas pela enfermidade, ressarcir o dano acumulado retornando todo o possível ao âmbito do comum. Em outras palavras, catar as páginas perdidas e devolvê-las ao livro da história.


[esta tradução será publicada materialmente no próximo número da revista Transgressoar, a sair provavelmente em junho. Se você conhece algum texto em outra língua à traduzir ou mesmo em língua portuguesa que dialogue com esta tradução de alguma forma, manda pra gente, vamos publicar na TRANSGRESSOAR]


editoramaracaxa@gmail.com

@editoramaracaxa


domingo, 18 de abril de 2021

TRADUÇÕES DA POESIA ANARQUISTA DE FERNANDA GRIGOLIN

SOU AQUELA MULHER DO CANTO ESQUERDO DO QUADRO, de FERNANDA GRIGOLIN, é um livro publicado em 2019 pela casa editorial independente anarcofeminista TENDA DE LIVROS (https://tendadelivros.org/), de São Paulo. Essa obra faz parte da série AQUELA MULHER. É uma ficção baseada em muita pesquisa histórica e se estrutura como uma conversa-entrevista em que uma trabalhadora que viveu a efervescência anarquista da primeira metade do século vinte conta sua história de vida. O fluxo principal, a conversa, é entrecortado por trechos e fac similes de jornais da época. No livro, escrito em português, existem duas poesias em língua espanhola, uma no começo* e outra no fim (Eu, Tita Mundo)**, aqui traduzi-as para o brasileiro, pela transcriação, pelo comunicar, pela relação somatória entre as línguas y gentes, para que a História, as palavras de Tita Mundo e a voz Daquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro ressoem ainda mais por aí, pelas mentes, chãos e céus do mundo…  

[Tereza Uirapuru]         


*Peço a ti, leitora,

que ao ler-me escutes

uma mulher tecendo em uma máquina.


Sim, sou eu a tecedora.


Posso ser também

uma mulher tipografa que busca,

letra por letra,

colocar um periódico pra circular.


Posso ser também

uma mulher que maneja o telégrafo

e avisa em ponto e traço a outras mulheres:

ouçam, vamos começar nossa greve.


Estas são as imagens,

eu lhe peço,

escute-as, são mulheres.


 O melhor seria falar de mim no gerúndio,

construindo-me,

armando-me linha a linha

desde uma temporalidade feminista.


Mas escrever no gerúndio o tempo todo

pode converter o que escreves

em algo aborrecedor,

quasi um erro linguístico.


Faz, leitora,

o gerúndio em ti,

lê estas palavras 

com teu movimento interno presente.


Só a inquietude 

constrói saberes desviantes.


Sim, sou eu a narradora.


**Nasci no 04 de maio de 1878 em Barcelona, Espanha

Quando tinha dois anos minha família e

eu fomos viver no Brasil.

Foi a primeira de muitas viagens em minha vida…


Minha mãe trabalhou a vida toda como costureira e

meu pai como sapateiro. Os dois anarquistas.

Nós, os filhos, aprendemos com eles na prática.


A biblioteca era o lugar comum da casa e

sempre líamos livros em espanhol, português e italiano.

Comecei a trabalhar com onze anos e

com vinte participei do meu primeiro boicote, me recordo bem.


Era 1908, São Paulo, armamos um plano entre nós mulheres,

que trabalhávamos costurando sacos de juta,

afrouxaríamos os pontos de maneira imperceptível,

os Mestres não o perceberiam, e

levariam os sacos aos armazéns para recheá-los de café.

Era um risco, passar pelo controle rigoroso que

eles faziam, mas com um bom plano seria possível…


Passamos alguns meses fazendo testes e

esse dia tudo saiu perfeito:

o café foi colocado nos sacos, milhares de sacos.

A maioria deles se descosturou nos trens rumo

a Santos, rumo a exportação…


A bolsa do café baixou pontos e

percebemos que unidas somos fortes.

Mas uma das companheiras nos delatou,

Lucía e eu fomos enviadas ao cárcere como conspiradoras…


Passaram cinco anos até eu poder sair.

Meus pais já haviam sido deportados à Espanha e

sobre meu irmão não consegui nenhuma informação.

Eu por haver cometido apenas

um “crime” contra a segurança nacional,

me meteram na prisão.

Quando sai,

minha casa já não existia,

estava completamente sozinha.

Lucía havia sido torturada e estava morta.

Eu tinha saudade dela.


Com nome falso consegui trabalho em uma Tecelagem 

(Cotonifício Crespi).

Também conheci

muitas mulheres que me ensinaram coisas ali.

Minha alma é livre e

enquanto a liberdade não for alcançada

como um fato social, serei grevista.


Aguentei pouco tempo sem planejar ações porque

a fábrica era um lugar insuportável…


Ali conheci a Sophie, ela andava com as irmãs Soares e

outras do Centro Feminino de Jovens Idealistas.

Começamos a viver juntas e me uni a essas mulheres

as quais até hoje sinto muita saudade.


Veio a Greve de 1917: enorme, imensa.

Meu coração dizia que as mudanças eram possíveis e

que íamos construir um futuro próspero.

Me encarceraram outra vez…


Descobriram que era Tita Mundo, a Perigosa Tita,

como me nomearam.


Por ser minha segunda vez na prisão me expulsaram pra Espanha.

Cheguei em Barcelona quase 38 anos depois de minha partida.

Não sabia muito daquele país,

sabia que era a terra de meus pais e

que lá eles começaram a dizer-se anarquistas,

nós líamos muitos livros feitos por espanhóis.

Ferrer Guardia havia sido fuzilado ali…


Mas meu cotidiano era no Brasil,

eu só conhecia as anarquistas que viviam lá.

Procurei irmãos e amigas da minha mãe e

me comentaram que meu pai e mãe haviam morrido

à mando do Pistoleirismo.


De volta à Espanha,

se organizaram em sindicatos,

armaram uma greve e

foram assassinados pelos matones do patrão…


De meu irmão nada sabiam,

mas depois de um tempo descobri que

passou anos sendo trasladado a vários cárceres,

como Bastilha do Cambuci, e que morreu em Clevelândia,

a prisão feita pra nós, os anarquistas,

bem isolada no norte do Brasil e

da qual só Domingos Passos e

alguns conseguiram escapar.


Em Barcelona, comecei a trabalhar como padeira

para ter dinheiro, poder sobreviver e me ir dali.

Via o sangue de meus pais por todos os lados…


Em 1920 subi em um navio de novo, agora até o México.

Cheguei ao Porto de Veracruz,

a Liberdade cobriu todo meu corpo outra vez.

Encontrei muitas mulheres preciosas em La Huaca,

muitas como eu:

solteiras, sem filhos e crentes do prazer sexual.

Fui viver nessa parte da cidade.


No pátio da vizinhança conversávamos,

liamos os artigos das mulheres sobre nossos direitos.

Muitas de nós eram prostitutas.

Falávamos todos os dias sobre a libertação sexual.


Os aluguéis subiam a cada dia.

As muchachas resolveram se unir e começaram a greve.

A união entre as mulheres contagiava de pátio à pátio.

Tamales, café preto, Terra e Liberdade era o que queríamos.

Em nossas portas pendurávamos:

Estoy en huelga y no pago la renta. 

(Estou em greve e não pago o aluguel)


Olhava nos olhos de cada companheira e via muita verdade.

Nossas reivindicações eram:

Liberação Sexual, Fim da Propriedade Privada e

Fim do Estado.

Lá conheci Petra e nos enamoramos.

Passávamos dias e dias juntas,

falando de nossas histórias…


Chegou o 5 de julho de 1922,

chovia como nunca,

a água molhava até os ossos.

Fomos todas ao sindicato,

havia muitas pessoas,

mulheres e homens.

A greve estava por todas partes…


Intentamos sair em marcha mas

os federais não nos deixaram.

Houve confronto.

Muitas mortes e encarcerados.

Me meteram no cárcere uma vez mais,

foi a pior prisão da minha vida, fui violada, ofendida…


Me obrigaram a fazer sexo com dois homens,

até hoje tenho pesadelos, policiais me violando.

Antes, meus sonhos sempre haviam sido ternos e

com mulheres…


No ano de 1923, um ano depois, 

criamos entre muitas a

Federação de Mulheres Libertárias em Veracruz.

Líamos e estudávamos a história 

das mulheres anarquistas mexicanas.


Soube da vida de Margarita Ortega Valdés,

uma valente combatente magonista que enfrentou o deserto e

a repressão, morreu fuzilada em 1913.

Aquilo me impressionou, mesmo depois de tudo

o que eu já tinha vivido.

A história dela estava cheia de detalhes 

e me parecia escutar sua voz pela noite dizendo:

FORÇA IRMÃ!

Ela entendia o deserto e

suas zonas de imenso calor como ninguém.

Comecei a ler mais sobre os magonistas e

suas intenções de resistência na fronteira.

A larga fronteira do México tem muita relação com

os Estados Unidos.

Nos tempos da Revolução Mexicana,

o periódico Regeneración tinha partes em inglês com textos

de Emma Goldman, por exemplo.


Soube que nesta época houve um comitê Pró

Revolução Mexicana em meu amado Brasil,

Emma Goldman ajudou que Neno Vascos e

Edgar Leuenroth soubessem mais da irmandade Magón.

No Brasil conheci Leuenroth,

era amigo de meus pais, nos falava de política e

economia brasileira,

ele acreditava muito no internacionalismo.


Em 1925, Petra e eu fomos juntas a Buenos Aires.

Tínhamos uma missão,

reforçar nossos laços de solidariedade,

enviar informação que não podia ir

em uma carta ou por telégrafo e

poder pensar juntas a luta latinoamericana.

Diziam que Argentina era um lindo país…


Lá também aconteceram greves,

Lá também as mulheres faziam periódicos.

La Voz de La Mujer foi o mais antigo.

Era uma emoção saber que éramos várias!


Em um encontro no México,

quando falaram sobre as greves na Argentina,

nomearam uma mulher:

Virginia Bolten.

Soube muitas coisas sobre a Argentina,

houve um grupo de mulheres chamado As Proletárias e

há um periódico em atividade Nuestra Tribuna.

a diretora é Juana Rouco Buella.


Ao chegar a Buenos Aires tive uma boa surpresa:

encontrei Luigi Magrassi,

filho de Matilde Magrassi,

ele estava vivendo na cidade.

Matilde e eu havíamos nos conhecido em uma atividade e

depois nos fizemos amigas.


Que mulher tão otimista,

acreditava muito na sociedade de resistência.


Na Argentina Matilde fazia parte do grupo

As Libertárias.

Luigi estava vivendo ali envolvido na

Liga de Educação Racionalista e

colaborava com o periódico La Protesta.


Buenos aires foi um lugar com muitas atividades anarquistas:

greve de padeiros e

discussões acerca das ideias de Malatesta.

Mas os sindicatos e

federações anarquistas estavam então vazios,

havia outras organizações que

aceitavam negociar com o governo.

A FORA estava com uma campanha laboral de 6 horas,

na tentativa de acabar com a desocupação.

De Buenos Aires tivemos que ir muito rápido,

a situação era insegura…


Petra decidiu ir pra Europa.

Eu decidi passar os últimos anos da minha vida no Brasil.

Tinha saudade das companheiras e da luta neste país…

Aluguei uma casa pequena em Santos, perto do mar.

Santos, em princípios do século,

foi considerada uma das cidades mais anarquistas do mundo

junto a Veracruz e Barcelona.

São os fluxos dos portos os que trazem sempre a novidade.

Ali fui viver. 


[traduções originalmente publicadas na revista Transgressoar: transcriação, tradução e comunicação artística -  número 1, fevereiro de 2021]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/transgressoar-transcriacao-traducao-e-comunicacao-artistica

VOCÊ SABE O QUE É CARTÓN?

 cartón em brasileiro é papelão

o papelão é uma amalgama de papéis prensados

esse papelzão, (ou papelão, papel grande), naturalmente serve muito bem para resguardar o conteúdo de um livro, que são papeis dobrados

existe um movimento aparentemente surgido na Argentina no começo deste século e alastrado por toda a américa latina que são as EDITORAS CARTONERAS, editoras ou grupos de pessoas, artistas, pensadoras independentes que encontram no mundo cartonero a realização de seus projetos literários e comunicativos, no sentido de que o livro cartonero é um objeto artesanal e, por isto, mais barato de ser produzido, apesar de mais trabalhoso de se fazer surgir por precisar ser sempre CRIADO e recriado, não apenas PRODUZIDO. 

Além do (re)uso do papelão como capa proporcionar uma liberdade artesanal na criação da estética das capas, com uso de tintas e recursos gráficos orgânicos, que tornam cada livro um livro único, também torna prática constante a reutilização de um material que muitas vezes é considerado dejeto e é reciclado no Brasil principalmente pela iniciativa de catadores e catadoras ruas afora, e ressignifica esse papelão enquanto objeto de reflexão e criação artística, inserindo a arte em um sentido mais ecossistêmico e tornando viável à pequenas editoras, com pouco capital de investimento e pouca mão-de-obra, digamos assim, circularem suas obras e expressarem suas ideias em forma de livro ou revista, geralmente a um preço acessível, apesar de serem objetos com alto teor artístico, na contracorrente de um mercado editorial que cobra caro por livros-coisas feitos por máquinas

nesse contexto é que surge a coletânea Letras de Cartón, uma publicação coletiva de várias editoras cartoneras, com textos do catalogo dessas editoras ou especialmente escritos para a obra. o tema das poesias e prosas foi COLETIVIDADE e SOLIDARIEDADE, mas o que uniu as editoras em um sentido de coletânea coletiva é muito mais a essência cartonera de cada uma delas, o que pode-se notar pela composição geográfica deste livro que vai desde estados das várias regiões do país até outros países como Peru, México, Venezuela, Argentina e Chile

 portanto, há nessa coletânea uma diversidade muito grande de projetos cartoneros, cada qual com sua dinâmica e processos criativos próprios. 

por exemplo nós criamos livros cartoneros, mas também criamos capas com outros papeis, outras gramaturas, enquanto que existem editoras que só fazem livros cartoneros, ou que fazem livros cartoneros com cola, ou só com costura, ou os dois, e assim vai...

o importante é saber que ser cartonero equivale a ser artesanal, e no mundo de hoje o trabalho artesanal cada vez mais recupera seu vigor e sua importância, pois nos reconecta com formas ancestrais de criação e comunicação

 saiba você que é possivel criar livros artesanais com um pouco de estudo e dedicação, e muito amor para com o objeto livro e sua magia

PARA QUEM QUISER SE APROFUNDAR NO ASSUNTO DAS EDITORAS CARTONERAS está disponível aqui no blog uma tradução publicada na TRANSGRESSOAR  de março deste ano cujo titulo é EDITORAS CARTONERAS E ALGUMAS NOTAS DE ESTÉTICA DA EMERGÊNCIA

https://editoramaracaxa.blogspot.com/2021/04/editoras-cartoneras-e-algumas-notas-de.html

aqui, o link para Letras de Cartón

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/letrasdecarton

agradecemos à Candeeiro Cartonera e à Catapoesia, organizadoras e instigadoras das Letras de Cartón


UM SALVE A TODES CARTONEIRES

A FLOR E A NÁUSEA (1945) POESIA

 A Flor e a Náusea 

de Carlos Drummond de Andrade 

em A Rosa do Povo




Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações

         e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que triste são as coisas, consideradas sem

                  ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Por fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do trá-

                      fego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto

Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas nåo se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas

           da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolu-

       mam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas

         em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o

       nojo e o ódio.


                      [1945]


quarta-feira, 14 de abril de 2021

CATALOGO DE PUBLICAÇÕES DA EDITORA MARACAXÁ

 CATALOGO ATUALIZADO (abril 2021)

~todas as publicações são impressas, costuradas e encadernadas artesanalmente~

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/


*TRANSGRESSOAR: TRANSCRIAÇÃO, TRADUÇÃO E COMUNICAÇÃO ARTÍSTICA  

       (REVISTA DE ARTE) 120pg

  

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/transgressoar-transcriacao-traducao-e-comunicacao-artistica


* AMARELO - PEDRO TORRES BUSCH 

             (CONTOS)   200pg 

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/amarelo-pedro-torres-busch


* BOMBANDO JESUS NO CORAÇÃO - GONZALO DÁVILA 

           (NOVELETA)  60pg    [LANÇAMENTO]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/bombando-jesus-no-coracao-gonzalo-davila


* ÂNTESE - ANA RAIZ   

              (POESIA)   40pg

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/antese-ana-raiz


* O QUE É CICLO LUNAR? - ISABELLA TORRES BUSCH 

        (coleção A Crescente) 50pg

               [livro de bolso]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/o-que-e-ciclo-lunar

* O DELÍRIO DAS COISAS - AURELIANO CAMINHAMAR [2a edição]    

              (MANIFESTO)   207pg

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/o-delirio-das-coisas

* AS FRONTEIRAS DO SONHO - GONZALO DÁVILA  

            (NOVELETA)      76pg

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/as-fronteiras-do-sonho


* LETRAS DE CARTÓN (COLETÂNEA CARTONERA) 64pg

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/letrasdecarton


* O ÍNFIMO NA BEIRA DO ABISMO - AURELIANO CAMINHAMAR  (ROMANCE EXPERIMENTAL)           231pg

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/o-infimo-na-beira-do-abismo


* POESIA DE CRUZ E SOUSA  (POESIA) 40pg

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/none-69708451


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NO PRELO:


* O QUE É FILOSOFIA? - JOSÉ VICTOR DA SILVA

(COLEÇÃO A CRESCENTE) [livro de bolso] 

* MANGUE SCIENTÍFICO - APROXIMAÇÕES ENTRE A CULTURA POPULAR E A CULTURA CIENTÍFICA (REVISTA DE CIÊNCIA)

                      POR LIVROS POPULARES E IDEIAS TRANSFORMADORAS


CLANDESTINO - um CONTO de Aureliano Caminhamar

 

clandestino


...mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol... 

          circuladô-de-fulô, Haroldo de Campos



- Papai, o que é clandestino?

- Ora, filhão, você sabe quais são as regras. Ninguém mais pode ser guardião das palavras.

- É que essa parece misturar duas, achei que assim podia.

- Mas não pode. Já lhe disse que regras são regras. Vamos, não me importune tanto, não vê que agora é hora do jacaré vomitar liquidificadores? Isso é coisa só de adultos. Vá fazer sua lição, menino, vá.

- Está bem.

O menino saiu gingando do escritório com janelas que tocavam o chão e viu o sol entrar pela claraboia, pulou amarelinha até chegar na porta, riscou o quadro-negro, cuspiu no coletor, girou a maçaneta e adentrou o quarto de teto curto e paredes ásperas.

Se acomodou esparramado na cadeira balançavel e conectou a fita de dois olhos na gaveta, procurou a palavra, vestiu os fones de alpaca algodoada, apoiou o antebraço na mesa larga e pressionou o plei.

Quando alguma palavra nova surgia ele sempre desvendava, antes de mais nada, seu ritmo próprio, minuciosamente, pra só depois tentar entender o que significava e como às vezes era difícil. Porque surgiam várias outras palavras desconhecidas e ele precisava então caçar outra música na fita infinita pra compreender o significado daquela outra. As vezes quando se dava por si estava perdido por entre as músicas das palavras, sem saber como havia chegado ali, sem saber como tinha começado. Ria um pouco de desespero, mas também de pura alegoria alegre, por estar a conhecer cada vez mais os significados e a desbravar os ritos, ritmos e sonoridades, que imaginava nunca terem fim. Por serem infinitas as músicas, também o eram as palavras.

Gostava de criar sinônimos, como gostava. É que cada música tinha dentro dela ainda outra música que era o espelho próprio da palavra do som que produzia o sentido. Sempre no ritmo dos instrumentos, conjuntado com o da voz humana e ainda seus timbres e pulsos, graves e agudos.

A música clandestino bastou escutar uma vez e já entendeu. Era como se já soubesse, antes mesmo de ouvir, e só precisasse confirmar. Captara o morfema pelo vão de uma conversa entre o mindingo e o dicioneiro da praça, quando escalava a fonte clara sem monumento pra poder ver os pássaros comendo as borboletas junto aos ratos e restos. Seu som desde logo impulsionou nele uma espécie de surpresa mesclada à uma familiaridade ancestral.

De um salto escorregou pela beira da marquise e galgou a montanha de folhas-de-bananeira úmidas do sereno, cruzou a praça e foi pra casa com a palavra ruminando na cabeça. Indagou o pai que, como sempre, se utilizou das regras pra dispensá-lo sem maiores cerimônias.

Fez parar de girar o som e foi fazer tarefa cantando o sinônimo que acabara de apropriar em clandestino. Uma palavra linda um som leve, melodioso.

Záira-tsiraquirabainaíra-dziraquirabáinai-tjzêgol

Recitava ela daqui, cantava de lá, ria e ria, sozinho, abraçado pela musicalidade endêmica dos significados, levado pela ritmagem das sílabas. Mas logo começou a nevar vespas em seu quarto e ele teve de se controlar, deixou de cantorias, lambeu as farpas da ponta dos dedos e tirou os cabelos da testa, precisava terminar a tarefa de casa.

Só que pela porta entreaberta ouviu a conversa do pai com a mãe. Tinha o hábito de manter o ouvido sempre atento em múltiplas frequências, feito uma antena, e, por isso, os mais velhos costumavam chamá-lo de parabolicamará. Palavra que, sinceramente, nunca entendera muito bem. Ficou escutando.

- Essas crianças de hoje em dia. Querem saber tantas palavras. Pra mim sempre bastaram algumas poucas. Que há com o mundo, Rogéria?

   - Não há nada com o mundo, Marcelo. Você que está diferente.

- Pelo contrário, eu sou o mesmo, as regras também, o mundo que mudou. Tem tanto tempo que somos guiados pelas regras que hoje em dia existem músicas demais. Uma palavra já não é mais uma palavra, são várias ao mesmo tempo, são tantos sentidos e significados e musicalidades que não há mais verdade, tudo está perdido, Rogéria, estamos condenados.

    - Como você é dramático. Esqueceu que as regras sempre são feitas ou pra serem quebradas ou pra serem alteradas?

- No mundo dos seus sonhos, só se for, sua anarquista. Me impressiona que após tantos anos você ainda pense assim. Uma criança que cresce sem verdades é um amorfismo. Que vamos fazer quando o Hermeto…

A funcionária geral da casa entrou de repente e ele teve que fingir não estar escutando pois era ofensa grave às regras ser bisbilhoteiro, ser curioso demais. Ela adentrou leve, fechou a porta, esquadrinhou o quarto, de pedaço em pedaço, peça por peça, lançou nele aqueles olhos encharcados de preguiça e desalento.

Era tarefa sua acompanhar o correto desenvolvimento das tarefas do menino, mas, como fazia isso a milhares de anos, gostava mesmo era de interpelá-lo pra juntos ouvirem músicas, dividirem as palavras, conjuntarem os significados, depois quem sabe as tarefas. Se chamava Israelita.

Com ela Hermeto aprendera muitas palavras. Incontáveis morfemas e suas relações, infindáveis músicas  e  corações.  Foi com ela que aprendeu que uma palavra poderia significar mais de uma música. Ela não tinha medo de ensinar, não se olvidava disso pelas regras. Segundo o pai era extremamente saudosista e mexeriqueira.

Se aproximando com velocidade e jeito sacou do bolso esquerdo o aparelho metálico poeirento com apenas dois botões: um de ligar e outro de desligar. Se inclinou ao menino apertando o de cima.

- Hermenêutinho, hoje você vai aprender a palavra tamborim.

    E a música ressoou pelo espaço, com arranjos crus e simples,sambados livres, deixando o ninho de nuvens que ali morava pictoricame nte espraiado. Em rebuliço estonteante as pernas da mesa feitas de cacto escorregaram por um instante enquanto do teto pendiam vasos de flores, pela janela saltaram gnomos e embaixo da terra os filhos das carroças despertaram com o ronco surdo do metrô.

A palavra principiou em cordas agudas aguadas e depois saudou em harmonia a voz e uma batucada foi crescendo em redor girando tudo em um impulso eufórico-solar de fazer formigar os tornozelos envolvendo os acordes num suingue ascendente e balançante que quando explodiu levou tudo junto condensando a fala do tamborim no desemboque musical daquela outra palavra que já ouvira tantas vezes e ainda não sabia o que significava (por mais que buscasse, por mais que navegasse pelo rio, não encontrava músicas que se chamassem ‘carnaval’), por isso não sabia, mas de alguma forma entendeu que  o  tamborim  era  feito  a semente dessa outra palavra, a faísca de sua germinação, grito das gentes, pequenas, mas fortes, tal qual o tamborim. Carnaval então seria a ressignificação da fala do tamborim, que era essa vontade de viver e dançar, ou algo do tipo, talvez fosse sinônimo de reivindicação, de inquietamento, ou talvez fosse completamente outra coisa. Quando acabou a palavra indagou à Israelita.

    - Menino, você ainda não conhece carnaval?

 - Não. Nenhuma música é ela.

 - Ah, ela é daquelas palavras, não é mesmo? Isso torna tudo mais difícil.

  - Que palavras?

Israelita se remoía internamente, será que devia falar? Não sabia até que ponto tinha o direito de interferir na musicalidade daquele menino. Amava-o como se fosse cria sua, e talvez fosse, mas quantas vezes o Doutor Marcelo não interrompera os dois em meio a conversas sinceras ameaçando entregá-la às autoridades por uso excessivo das palavras, por explicações demasiado aprofundadas das músicas, por corromper a mocidade alheia com conhecimentos apenas instintivos, simplesmente sensitivos, com saudosismos históricos.

- Nada nada. Posso te contar uma história?

- Claro.

- Me escuta bem que só vou contar uma vez. Minha avó costumava ensinar que muito tempo atrás, antes do Grande Dilúvio, nossos antepassados tinham Carnaval. Mas carnaval não era só uma palavra, era muito mais. Você consegue entender isso?

- Acho que sim.

- Pois então, naqueles dias as pessoas não tinham que seguir as mesmas regras que nós, as condutas eram outras, as condições eram outras, mas as palavras e as músicas eram as mesmas. Está me acompanhando? O carnaval surgiu como uma festa clandestina, quando os menos favorecidos se reuniam na rua em festa pra arregimentar um pouco de alegria em meio a vida árdua que levavam.

- Porque a vida deles era ardida?

- Não era ardida, era árdua. Que é arder de dificuldade. É que nem todo mundo tinha uma casa pra morar, o que comer todo dia. Tinha gente até que morria de fome. Mas, apesar de tudo, eles tinham a música, seus corpos, suas vozes, suas crianças, suas raízes, as suas palavras. Tinham vontade de gritar e foi daí que veio o carnaval. De tirar das frinchas da dor a alegria. Carnaval era vontade de viver além da carne, conforme a própria etimologia diz.

                    - Etimologia?

- Como sou linguaruda. Já falei demais, menino. Que tal sua tarefa?

E Hermeto mostrou a ela o gráfico de tabelas e ondas composto pela apreensão dos movimentos teológicos espaciais. Seu dever era prever, com a ajuda da máquina quântica e seus cálculos, a inclinação   exata   do   eixo   de   rotação   dos protoplanetas em um raio de quinhentas e doze mil versetas, com justificativa musical e tudo.

Israelita não poderia ajudar, mas não deixou de incentivá-lo, melancolicamente rindo os dentes amarelêlados. Ao menos as tarefas ainda tratavam das músicas. Ficou quieta, vendo o menino pensar, lembrando das etimologias, do tempo em que a linguagem podia ser contada, não só musicada. Lembrou que algumas palavras foram escolhidas, pela cúpula do Primeiro Governo, eleito indiretamente, para serem apagadas e suas músicas excluídas dos arquivos. Pois “suas significações não seriam de interesse para a nova humanidade que despontava naquele pedaço de terra. Não haveriam eles de cair nos mesmos erros dos antepassados, dessa vez acertariam, não topariam com seu fim. Deveriam fazer desaparecer as palavras que insinuassem ou fossem, em qualquer grau, clandestinas, sujas e distantes do centro funcional do relógio do mundo.”

Surgiram então os tribunais de inquisição para averiguar que palavras seriam estas. Os pensadores oficiais da nova “filosofia” acreditavam que a clandestinidade era o instrumento do Inimigo para corromper as crianças, os significados e até a vida em si. O certo era exterminá-las, apagar aquela fatia da cultura, cortar o mal pela raiz. Se apoiavam nas regras pra isso, se inflavam na proeminência de sua posição social e viam-se mesmo como os salvadores da humanidade.

- Israelita, quem inventou as regras?

- Não se sabe ao certo. Encontraram um papel amarelado  no  túmulo  da última  chefia dos nossos antepassados junto a incontáveis pinturas e um amontoado de pedras coloridas e panos. No papel estavam as regras, delineadas em tinta de lagarto e mel. Tomaram-nas então como verdades divinas e em torno disso cresceu a nossa cultura.

*

Rogéria sentara-se à mesa junto com Marcelo. Servira café a ambos mais de duas vezes. Olhava-o no fundo do fundo do olho, tentando enxergar o homem com quem se casara. Ele, em contrapartida, tentava ver nela a sua representação ideal de esposa. Queria que ela concordasse com seus métodos e o ajudasse, mas as coisas tomavam outro rumo. Ela andara lendo livros dos antepassados.

                    - Querido, regras são regras. E apenas regras. O que a gente realmente precisa pra viver não é nada novo ou moderno, não são palavras no papel, não são frases antigas que nem sabemos ao certo se se inserem nos costumes. Você esqueceu que tudo passa? Não lembra de seu avô? Que Deus é esse que devemos acreditar cegamente? São regras, apenas regras, almejos humanos. Está me entendendo?

  - Quer dizer que você não crê em deus? E mencionar meu avô, não tinha porque, você sabe como eu fico.

    - Você não escuta! Lembra do que seu avô te ensinou. O Hermeto precisa disso, conhecer o humano além das tecnologias, da significação unilateral, dessas grades que comprimem. Esquece um pouco das regras e ama seu filho com simplicidade, com conhecimento, pelo menos uma vez na vida.

Enquanto isso pela janela incidiam as abelhas-robôs e a cortina sombreava soturnamente os musgos que subiam pela tez da parede imaculada, distante no horizonte uma bicicleta progredia com pentes pedais e cadernos guidões, os skates magnéticos flutuavam caóticos, a estratosfera ia empanturrada de satélites cinzentos, o horizonte desaparecia no rastro de uma gota de orvalho.

- Israelita, foi Deus que escreveu as regras?

- Não. Deus nunca escreveu nada. Ele sempre assoprou a verdade, mas o espaço de um papel é muito pouco pra seus desígnios. Essas regras é sempre algum humano fazendo apoteose do próprio pensamento. Tanto que, pras mesmas regras, as mesmas palavras, mesmas músicas daquele papel, existem outras interpretações, de outras pessoas. Há também quem diga que as regras não estão no papel, mas nas pinturas que lotavam as paredes e seriam, por se tratar de arte, e, por isso, instintivas e livres, representativas da verdadeira mitologia social total daquele agrupamento humano, diferente do papel, que representaria apenas uma instrumentalização transitória daquela culturalidade. Mas decidiram que era de um jeito e assim somos coagidos a viver. Todo dia. Espero não estar usando muitas palavras desconhecidas. Pensando bem, acho que usei clandestinas demais... Mas chega de falar, chega de dizer. Às vezes até eu preciso lembrar disso... Olha só, vou te contar só mais uma coisa, promete guardar segredo?

- Prometo, prometo.

- Escuta bem. Todas  as  palavras  clandestinas têm uma palavra-filha que é ela mesma juntada a outra palavra, com um traço entre elas. Foi o jeito que as palavras musicalmente irregráveis arranjaram de serem perpetuadas. Me escuta, as músicas clandestinas sempre vão poder ser escutadas. É só saber procurar. Não se esqueça.

Nessa hora entrou o pai, com a calopsita apoiada no ombro esquerdo, a bengala ornamental com ares de cajado de cobra no punho, os dentes cerrados e os olhos gigantes, ardilosos.

- Que estão conversando?

 - Sobre a lição dele, Senhor.

  - A Israelita tava me ajudando com a tarefa.

- Pois não faz mais que a obrigação. Pode ir indo, Israelita. Os dados pro lotação estão na bancada.

                  - Tchau, Hermeto.

                   - Tchau-Israelita.

- Ela não estava enchendo sua cabeça de asneiras né?

- De jeito nenhum... Pai, posso perguntar uma coisa?

- Claro, filhão.

- Quando você tinha minha idade, gostava das músicas?

- Até que sim. Entrava numa onda ou outra. Mas gostava das palavras em si mesmas.

- Como assim?

- Eu nunca te disse isso? 

Ele se ergueu do banco de tartaruga e lançou o estilingue na furquilha musgada, fez descer o assento-canoa, aquele em que balançava Hermeto até vê-lo dormir muitos anos atrás.

- É que meu bisavô encontrou, em peregrinação marítima, um livro escrito em um lugar antigo chamado Bahia. Ele me mostrou esse livro quando eu era um pouco mais jovem que você. Lá vinham as palavras em letras grandes e embaixo os significados e origens. Às vezes até a etimologia.

- Etimologia?

- É o estudo da formação das palavras ao longo do tempo. Você já percebeu como nossa linguagem é complexa? Isso não surgiu da noite pro dia. É feito um arsenal de criatividades humanas se somando em torno dessa linha que chamamos de tempo. Nessa história, a língua que falamos sempre é a continuação de uma outra mais antiga. Se retrocedermos bastante no tempo chegaremos ao tempo em que não falávamos, mas enchíamos as paredes de garatujas. Nossa língua existe pelo que veio antes, continuando toda a herança linguística principiada muito antes da primavera que você nasceu. O etimólogo busca a origem das palavras, suas continuações e descontinuidades.

- Que maneiro pai. Porque não aprendemos mais etimologia?

- Porque as regras mudaram, filhão. É que no fim das contas os pensadores perceberam que a etimologia acabava só confuseando mais as coisas. Por mais que fosse interessante, não era seguro. No passado  guerras  e  mais  guerras  aconteciam  por dissonâncias etimológicas e muitas pessoas morriam por isso. Muitas teorias apontam que foi o caos propiciado pelo conhecimento dessas origens das ideias que causou o fim dos nossos antepassados. Por isso, o consenso foi de que o melhor era não ensinar mais as crianças sobre isso. O melhor era destruir a ideia, cortar o mal pela raíz. Na minha época já não ensinavam, mas meu bisavô me mostrou o livro, porque acreditava no seu poder de transformação. Parece muito complicado o que digo?

- Nem um pouco.

- Garoto esperto. Afinal, descobriu o que é clandestino? Qual das músicas você usou?

- Usei a do Chico, pai.

- E então?

- Pelo que pude entender, clandestino é tudo aquilo que é vivo, mesmo quando tudo conspira contra sua existência. E também o clã das gentes que não tem destino certo e andam por ai querendo-saber-sempre-um-pouco-mais. Algo assim. Aliás, clandestino é sinônimo de marginal?

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                         *

Israelita se aprumou no vagão do lotação sem conseguir respirar direito. O aroma de suor misturado com mijo dominava o ar. Ficou pensando em tudo. No antes, no depois, no agora. Pensou até que havia chegado a uma conclusão.

Ali as pessoas tossiam, em condições animalescas, iam pras suas casas, após o  trabalho,cansadas, mas seguras, sem fome, enquanto pela janela passavam voando os postes fosforescentes, insondáveis para ela, que concluiu seu raciocínio e não pensou em mais nada.

Se antes havia mortes pela fome ou pela falta de segurança, pelo menos os seres humanos tinham a liberdade. De dizer, de procurar, de serem curiosos, de alçar a origem das coisas, não só suas músicas, que eram apenas um reflexo da significação geral de cada coisa e cada ato. No mais, era preferível uma liberdade perigosa a uma servidão pacífica.


[publicado originalmente em O Delírio das Coisas (2020)]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/o-delirio-das-coisas

[Tradução] Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes - Gabriel Garcia Márquez (Colômbia)

  Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes,   de  Gabriel Garcia Marquez   ( 1968)                                                   trad...