domingo, 18 de abril de 2021

A FLOR E A NÁUSEA (1945) POESIA

 A Flor e a Náusea 

de Carlos Drummond de Andrade 

em A Rosa do Povo




Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações

         e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que triste são as coisas, consideradas sem

                  ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Por fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do trá-

                      fego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto

Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas nåo se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas

           da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolu-

       mam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas

         em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o

       nojo e o ódio.


                      [1945]


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