em "Editoriales Cartoneras en America Latina – poéticas, politicas y pedagogias," pág. 69, Valeria Lepra Terzaghi – 2018, Rosário, Argentina
(tradução de Pedro Torres Busch)
Reinaldo
Laddaga, em seu livro Estética da Emergência (2006), agrupa e analisa uma série
de projetos à luz de algumas noções que o levam a propor a emergência de uma
nova cultura das artes. Aqui se tomarão algumas destas noções e se usarão como
ferramentas de interpretação das práticas de algumas das editoras cartoneras a
partir das quais se realiza esta investigação.
Não
se trata, como já foi suficientemente esclarecido, de encontrar dados
representativos que permitam uma definição essencialista destas práticas e sim
dar a conhecer certos traços de interesse presentes em algumas destas editoras,
que configurem uma familiaridade que permita reconhece-las ou remiti-las à um
jogo comum, sem com isso fixá-las.
Segundo
Reinaldo Laddaga “a noção de emergência é corolário de uma séria
de traços compartilhados por um tipo de projeto artístico que põe em jogo uma
noção do comum que extrapola as tradicionais formas de associação próprias do
estado-nação moderno. Estas novas formas de coletividade, sua preocupação pela
promoção de ações que superem a mera criação de objetos, para dar lugar a
intervenções na comunidade, e a criação de “identidades”, configuram uma nova
cultura das artes.”
Este
tipo de projeto artístico aparece como de difícil acesso pois não é apreensível
em termos de reconhecimento disciplinar, escapa-lhe a determinação que permite
localizá-lo em uma tradição “nem produções de artes visuais, nem de
música, nem de literatura” (Laddaga, 2006, pág. 11). Nessa perspectiva el
artista opera como catalizador ou ativadora. Mobiliza uma série de encontros e
ações, mas em seu papel no coletivo não se supõe que se estabeleça uma relação
hierárquica em que prevaleça sobre es demais integrantes. Pode pensar-se que
esta modalidade de trabalho produz um obscurecimento da autonomia tanto
da prática quanto do próprio artista. Trabalhando com outras gentes a
atribuição individual se dilui no fazer coletivo não tão claramente
identificável:
“O
artista atua como catalisador, ativa as relações sociais e estimula uma articulação
dinâmica entre os participantes. Os sentidos são construídos coletivamente. E é
essa construção coletiva que traz a riqueza de significados. O artista funciona
como produtor e reprodutor de sentidos culturais, um estimulador de interações,
encontros que rompem os limites entre arte e vida, e aqueles que ainda existem
na dicotomia entre arte e cultura popular.” (Dulcinéia Catadora, em Bilbija y
Carbajal, 2009, pág. 147)
As
formas de relação que se produzem nestes coletivos diferem também daquelas que
se consolidam através da pertencência à partidos políticos, sindicatos, nações,
e atua como espaço de identificação com valores que lhe são próprios,
promovendo novas formas de colaboração, participação e pertencer.
Comunidades
como as configuradas por estas editoras cartoneras correspondem a formas de
identificação tanto local quanto virtual/global. A identificação local tem a
ver com os espaços de produção – não só do objeto livro, mas também do encontro
como instância para a participação, o intercâmbio de saberes, a reunião com
outras gentes – enquanto que a identificação virtual se compõe de instâncias de
comunicação através das redes onde estas pequenas comunidades interagem,
configurando por sua vez comunidades efêmeras que existem o tempo que durar
esse intercâmbio.
Podemos
localizar nos fragmentos das entrevistas realizadas para este trabalho as
reflexões sobre estes modos de “fazer coletivo”. Algumas intervenções estavam
dirigidas às relações locais e sua inserção em uma comunidade preexistente.
“Uma
editora tem sua razão de ser onde se cria. Ou seja, causa um impacto na
comunidade onde está. Porque agorinha, falta rever digamos, onde se criaram as
editoras, porque de certo tinham, como posso dizer, necessidade, não? Que fosse
econômica, ou com o papelão, ou uma necessidade de publicar, etc, etc. Isso foi
no começo, sim, mas ahorita é um pouco ao contrário, já que este
fenômeno é muito mais conhecido a nível mundial. Ou seja, na realidade há gente
que diz: "eu vou fazer minha cartonera", não é? É, então, aí é como um
efeito de moda. Então a pergunta seria, bem, aí está seu projeto cartonero,
esse projeto, que impacto tem em sua comunidade? Que impacto tem em sua
cidade?” (Comunicação pessoal – entrevista com La Cartonera, abril 30, 2016)
E
mais adiante:
“Pois
quero te dizer que, não é um movimento, é como um fenômeno espontâneo. Ou seja,
claro que existem diferenças, porque existem cartoneras em muitos países e se
vê como um todo. Mas cada projeto tem realmente sua própria dinâmica e sua
própria razão de ser.” (Comunicação pessoal – entrevista com La Cartonera,
abril 30, 2016).
Outras
intervenções buscavam dar conta das interações que “criavam coletividades” a
nível virtual, através de comunicações em redes sociais, com outras cartoneras
mas também com leitorxs ou simpatizantes:
“Bem,
basicamente porque eu sou um indivíduo antigo, não uso celular, essas coisas.
Então descobri essa ferramenta e me permite primeiro “comunicación”,
comunicação com muitos companheires, me permite agregar os feedbacks de certos
recebedores dos livros, e divulgar o que fazemos, né?” (Comunicação pessoal –
Entrevista com Vento Norte Cartonero, setembro 27, 2016)
Estas formas de experimentar o comum, estes modos de associação se distanciariam das formas que assumem organizações tradicionais como estados, partidos, sindicatos, conforme Laddaga afirma: “desde a perspectiva do sistema até a estrutura, as organizações são sistemas hierarquizados de regras normativas. As desorganizações são tal vez menos hierárquicas e mais horizontais. São antissistêmicas: não só antiestrutura mas também antisistema.” Mais que seguir regras, organizar-se por meio de hierarquias e ocupar-se de sua própria reprodução colocariam sua capacidade em um estar em movimento próprio da criação, e sua preocupação estaria orientada para a produção. Nessa linha, um integrante da Amapola Cartonera propõe:
“E há grupos como nós, que não sei qual
a proporção mas creio que a grande maioria, que somos coletivos, que
simplesmente se unem por um fim comum e lançam projetos. Nós temos trabalhado
assim e queremos seguir trabalhando assim, porque não queremos ter tipo esse
peso do institucional, apesar de que temos trabalhado e queremos seguir
trabalhando com instituições públicas ou privadas, mas que nossa organização
não dependa dessa estrutura um pouco rígida, que tem uma entidade constituída.
“ (Comunicação pessoal – Entrevista com Amapola Cartonera, fevereiro 9, 2016).
Estas práticas interessadas pela
geração de âmbitos de relações se apresentam aos outros não através de algo que
o observador deveria poder apreciar, separado de todo intercâmbio, mas sim porque
se propõem “em tantos conjuntos de materiais abertos a reelaboração entre os
quais não se encontra nada que limite, a maneira como faz uma obra de arte,
nenhum dimensão enclausurada ou caixa escura.” (Laddaga, 2006, pág. 287).
É interessante trazer aqui um fragmento
do manifesto de Dulcinéia Catadora em relação a práticas de intervenção no
espaço urbano:
“Nossas intervenções chamam a atenção
para o papelão. Andamos pelas ruas com uma “capa” de papelão pintada, onde
penduramos nossos livros. Com megafone, declamamos poesias de autores que
colaboram com o Dulcinéia. Isso causa uma perturbação, rompe com os
acontecimentos esperados do cotidiano. Divulgamos a literatura a alto e bom
som. Literatura para todes, poesia nas praças públicas, pelas ruas, para quem
quiser ouvir.
E também procuramos provocar descontinuidades na realidade, dando espaço para que os sujeitos envolvidos reconstruam sua subjetividade. Em certas intervenções, apenas fazemos uma pergunta, deixando o interrogado livre para interpretá-la e nos dispomos a ouvir e anotar sua resposta.” (Dulcinéia Catadora em Bilbija y Carbajal, 2009, pág. 148).
Na forma de mostrar, assim como na
forma de produzir, estes coletivos promovem “atos de reunião”, como os denomina
Laddaga, instâncias para a emergência do comum, para a ação coletiva, a
negociação, a cooperação em torno da consecução de interesses compartilhados.
Estes “atos de reunião” se configuram também como espaços de participação
aberta, variável, de dedicações dispares. Assim alguns formam o núcleo sólido
do projeto e outres terão uma participação mais intermitente, ocasional, sem
que isto impacte negativamente nos vínculos ou no futuro do projeto. Estas
múltiplas formas da participação produziriam modificações no que diz respeito a
definição da autoria, haveria um obscurecimento em torno da atribuição da
mesma, pelo que me atrevo a acrescentar que na resposta do interrogado, ouvido
e registrado com Dulcinéia Catadora é produzido o advento de uma autoria
compartilhada. Nesse sentido cabe citar aqui um fragmento em que Laddaga fala
sobre um novo lugar que ocuparia o artista distante da construção moderna que o
localizava em um lugar de distinção e reconhecimento, e propõe em troca um
lugar mais próximo ao de articulador dos processos de uma comunidade
determinada:
“... sujeitos quaisquer, ainda que
situados em lugares singulares de uma rede de relações e de fluxos. Sujeitos
integrados a processos que conjugam a produção de ficções e de imagens e a
composição de relações sociais, campos de atividade cujo desenvolvimento se
espera que favoreça a abertura e estabilização de espaços onde possam se
realizar explorações coletivas de mundos comuns...” (Laddaga, 2006, pág. 42)
Neste tipo de exploração es
participantes podem revisar e modificar eventualmente tanto o lugar que ocupam
como aspectos associados a tarefa que desenvolvem, é um espaço para o
aprendizado que não está predeterminado e que se produz no desenvolver do
acionar coletivo.
É de interesse mencionar que Laddaga
faz uma distinção entre as propostas que analisa e a manifestação própria das
produções de vanguarda, na forma de seus manifestos. Sobre isso propõe,
seguindo Andrew Webber, que o manifesto é uma forma de exibicionismo realizado
para ser apresentado publicamente e que cumpre com a intenção de desafiar
normas dominantes, uma vez que busca produzir certas certezas na forma de uma
proposição que aspira cumprir. Se boa parte do trabalho analítico deste projeto
se orienta pelos manifestos produzidos pelas primeiras editoras cartoneras, eu
considero-os mais como uma narrativa dos integrantes em torno de suas práticas
até o momento do que um programa orientador e definidor das práticas futuras.
[originalmente publicado na revista Transgressoar nº1, fevereiro de 2021]
Nenhum comentário:
Postar um comentário