terça-feira, 13 de abril de 2021

EDITORAS CARTONERAS E ALGUMAS NOTAS DE ESTÉTICA DA EMERGÊNCIA

em "Editoriales Cartoneras en America Latina – poéticas, politicas y pedagogias," pág. 69, Valeria Lepra Terzaghi – 2018, Rosário, Argentina

                                                  (tradução de Pedro Torres Busch)


Reinaldo Laddaga, em seu livro Estética da Emergência (2006), agrupa e analisa uma série de projetos à luz de algumas noções que o levam a propor a emergência de uma nova cultura das artes. Aqui se tomarão algumas destas noções e se usarão como ferramentas de interpretação das práticas de algumas das editoras cartoneras a partir das quais se realiza esta investigação.

Não se trata, como já foi suficientemente esclarecido, de encontrar dados representativos que permitam uma definição essencialista destas práticas e sim dar a conhecer certos traços de interesse presentes em algumas destas editoras, que configurem uma familiaridade que permita reconhece-las ou remiti-las à um jogo comum, sem com isso fixá-las.

Segundo Reinaldo Laddaga a noção de emergência é corolário de uma séria de traços compartilhados por um tipo de projeto artístico que põe em jogo uma noção do comum que extrapola as tradicionais formas de associação próprias do estado-nação moderno. Estas novas formas de coletividade, sua preocupação pela promoção de ações que superem a mera criação de objetos, para dar lugar a intervenções na comunidade, e a criação de “identidades”, configuram uma nova cultura das artes.”

Este tipo de projeto artístico aparece como de difícil acesso pois não é apreensível em termos de reconhecimento disciplinar, escapa-lhe a determinação que permite localizá-lo em uma tradição nem produções de artes visuais, nem de música, nem de literatura” (Laddaga, 2006, pág. 11). Nessa perspectiva el artista opera como catalizador ou ativadora. Mobiliza uma série de encontros e ações, mas em seu papel no coletivo não se supõe que se estabeleça uma relação hierárquica em que prevaleça sobre es demais integrantes. Pode pensar-se que esta modalidade de trabalho produz um obscurecimento da autonomia tanto da prática quanto do próprio artista. Trabalhando com outras gentes a atribuição individual se dilui no fazer coletivo não tão claramente identificável:

“O artista atua como catalisador, ativa as relações sociais e estimula uma articulação dinâmica entre os participantes. Os sentidos são construídos coletivamente. E é essa construção coletiva que traz a riqueza de significados. O artista funciona como produtor e reprodutor de sentidos culturais, um estimulador de interações, encontros que rompem os limites entre arte e vida, e aqueles que ainda existem na dicotomia entre arte e cultura popular.” (Dulcinéia Catadora, em Bilbija y Carbajal, 2009, pág. 147)

As formas de relação que se produzem nestes coletivos diferem também daquelas que se consolidam através da pertencência à partidos políticos, sindicatos, nações, e atua como espaço de identificação com valores que lhe são próprios, promovendo novas formas de colaboração, participação e pertencer.

Comunidades como as configuradas por estas editoras cartoneras correspondem a formas de identificação tanto local quanto virtual/global. A identificação local tem a ver com os espaços de produção – não só do objeto livro, mas também do encontro como instância para a participação, o intercâmbio de saberes, a reunião com outras gentes – enquanto que a identificação virtual se compõe de instâncias de comunicação através das redes onde estas pequenas comunidades interagem, configurando por sua vez comunidades efêmeras que existem o tempo que durar esse intercâmbio.

Podemos localizar nos fragmentos das entrevistas realizadas para este trabalho as reflexões sobre estes modos de “fazer coletivo”. Algumas intervenções estavam dirigidas às relações locais e sua inserção em uma comunidade preexistente.

“Uma editora tem sua razão de ser onde se cria. Ou seja, causa um impacto na comunidade onde está. Porque agorinha, falta rever digamos, onde se criaram as editoras, porque de certo tinham, como posso dizer, necessidade, não? Que fosse econômica, ou com o papelão, ou uma necessidade de publicar, etc, etc. Isso foi no começo, sim, mas ahorita é um pouco ao contrário, já que este fenômeno é muito mais conhecido a nível mundial. Ou seja, na realidade há gente que diz: "eu vou fazer minha cartonera", não é? É, então, aí é como um efeito de moda. Então a pergunta seria, bem, aí está seu projeto cartonero, esse projeto, que impacto tem em sua comunidade? Que impacto tem em sua cidade?” (Comunicação pessoal – entrevista com La Cartonera, abril 30, 2016)

E mais adiante:

“Pois quero te dizer que, não é um movimento, é como um fenômeno espontâneo. Ou seja, claro que existem diferenças, porque existem cartoneras em muitos países e se vê como um todo. Mas cada projeto tem realmente sua própria dinâmica e sua própria razão de ser.” (Comunicação pessoal – entrevista com La Cartonera, abril 30, 2016).

Outras intervenções buscavam dar conta das interações que “criavam coletividades” a nível virtual, através de comunicações em redes sociais, com outras cartoneras mas também com leitorxs ou simpatizantes:

“Bem, basicamente porque eu sou um indivíduo antigo, não uso celular, essas coisas. Então descobri essa ferramenta e me permite primeiro “comunicación”, comunicação com muitos companheires, me permite agregar os feedbacks de certos recebedores dos livros, e divulgar o que fazemos, né?” (Comunicação pessoal – Entrevista com Vento Norte Cartonero, setembro 27, 2016)

Estas formas de experimentar o comum, estes modos de associação se distanciariam das formas que assumem organizações tradicionais como estados, partidos, sindicatos, conforme Laddaga afirma: “desde a perspectiva do sistema até a estrutura, as organizações são sistemas hierarquizados de regras normativas. As desorganizações são tal vez menos hierárquicas e mais horizontais. São antissistêmicas: não só antiestrutura mas também antisistema.” Mais que seguir regras, organizar-se por meio de hierarquias e ocupar-se de sua própria reprodução colocariam sua capacidade em um estar em movimento próprio da criação, e sua preocupação estaria orientada para a produção. Nessa linha, um integrante da Amapola Cartonera propõe:

         “E há grupos como nós, que não sei qual a proporção mas creio que a grande maioria, que somos coletivos, que simplesmente se unem por um fim comum e lançam projetos. Nós temos trabalhado assim e queremos seguir trabalhando assim, porque não queremos ter tipo esse peso do institucional, apesar de que temos trabalhado e queremos seguir trabalhando com instituições públicas ou privadas, mas que nossa organização não dependa dessa estrutura um pouco rígida, que tem uma entidade constituída. “ (Comunicação pessoal – Entrevista com Amapola Cartonera, fevereiro 9, 2016).

         Estas práticas interessadas pela geração de âmbitos de relações se apresentam aos outros não através de algo que o observador deveria poder apreciar, separado de todo intercâmbio, mas sim porque se propõem “em tantos conjuntos de materiais abertos a reelaboração entre os quais não se encontra nada que limite, a maneira como faz uma obra de arte, nenhum dimensão enclausurada ou caixa escura.” (Laddaga, 2006, pág. 287).

         É interessante trazer aqui um fragmento do manifesto de Dulcinéia Catadora em relação a práticas de intervenção no espaço urbano:

         “Nossas intervenções chamam a atenção para o papelão. Andamos pelas ruas com uma “capa” de papelão pintada, onde penduramos nossos livros. Com megafone, declamamos poesias de autores que colaboram com o Dulcinéia. Isso causa uma perturbação, rompe com os acontecimentos esperados do cotidiano. Divulgamos a literatura a alto e bom som. Literatura para todes, poesia nas praças públicas, pelas ruas, para quem quiser ouvir.

         E também procuramos provocar descontinuidades na realidade, dando espaço para que os sujeitos envolvidos reconstruam sua subjetividade. Em certas intervenções, apenas fazemos uma pergunta, deixando o interrogado livre para interpretá-la e nos dispomos a ouvir e anotar sua resposta.” (Dulcinéia Catadora em Bilbija y Carbajal, 2009, pág. 148).

         Na forma de mostrar, assim como na forma de produzir, estes coletivos promovem “atos de reunião”, como os denomina Laddaga, instâncias para a emergência do comum, para a ação coletiva, a negociação, a cooperação em torno da consecução de interesses compartilhados. Estes “atos de reunião” se configuram também como espaços de participação aberta, variável, de dedicações dispares. Assim alguns formam o núcleo sólido do projeto e outres terão uma participação mais intermitente, ocasional, sem que isto impacte negativamente nos vínculos ou no futuro do projeto. Estas múltiplas formas da participação produziriam modificações no que diz respeito a definição da autoria, haveria um obscurecimento em torno da atribuição da mesma, pelo que me atrevo a acrescentar que na resposta do interrogado, ouvido e registrado com Dulcinéia Catadora é produzido o advento de uma autoria compartilhada. Nesse sentido cabe citar aqui um fragmento em que Laddaga fala sobre um novo lugar que ocuparia o artista distante da construção moderna que o localizava em um lugar de distinção e reconhecimento, e propõe em troca um lugar mais próximo ao de articulador dos processos de uma comunidade determinada:

         “... sujeitos quaisquer, ainda que situados em lugares singulares de uma rede de relações e de fluxos. Sujeitos integrados a processos que conjugam a produção de ficções e de imagens e a composição de relações sociais, campos de atividade cujo desenvolvimento se espera que favoreça a abertura e estabilização de espaços onde possam se realizar explorações coletivas de mundos comuns...” (Laddaga, 2006, pág. 42)

         Neste tipo de exploração es participantes podem revisar e modificar eventualmente tanto o lugar que ocupam como aspectos associados a tarefa que desenvolvem, é um espaço para o aprendizado que não está predeterminado e que se produz no desenvolver do acionar coletivo.

         É de interesse mencionar que Laddaga faz uma distinção entre as propostas que analisa e a manifestação própria das produções de vanguarda, na forma de seus manifestos. Sobre isso propõe, seguindo Andrew Webber, que o manifesto é uma forma de exibicionismo realizado para ser apresentado publicamente e que cumpre com a intenção de desafiar normas dominantes, uma vez que busca produzir certas certezas na forma de uma proposição que aspira cumprir. Se boa parte do trabalho analítico deste projeto se orienta pelos manifestos produzidos pelas primeiras editoras cartoneras, eu considero-os mais como uma narrativa dos integrantes em torno de suas práticas até o momento do que um programa orientador e definidor das práticas futuras.


[originalmente publicado na revista Transgressoar nº1, fevereiro de 2021]

https://editora-maracaxa.lojaintegrada.com.br/transgressoar-transcriacao-traducao-e-comunicacao-artistica

 

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